Onde se realiza o programa de Stephen Colbert (The Late Show) que admiramos pelo seu sentido de espectáculo e também pela capacidade de desmontar os prós e contras da cena política dos EUA, incluindo, claro, as atribulações da era Donald Trump? As respectivas gravações são feitas no Teatro Ed Sullivan, sala lendária de Nova Iorque.E porque é que, justamente, o nome de Ed Sullivan (1901-1974) ficou como uma referência mítica nos anais da televisão dos EUA? Por causa de um acontecimento excepcional que mudou a história da música e de toda a cultura popular. Ou seja: a 9 de fevereiro de 1964, o programa The Ed Sullivan Show (nesse mesmo teatro que era, então, o estúdio 50 da CBS) acolheu uma banda que era já um fenómeno na Europa, embora mal conhecida pelos americanos, de seu nome The Beatles!Pois bem, se tais memórias nos bastam para resumir a herança televisiva de Ed Sullivan, é altura de parar para vermos Ed Sullivan: Domingos de Excelência, um dos melhores documentários actualmente nas plataformas de streaming (Netflix, neste caso). No original Sunday Best, trata-se do derradeiro trabalho de Sacha Jenkins, jornalista e produtor/realizador da televisão americana, falecido este ano, a 23 de maio, aos 53 anos, atingido por uma doença neurodegenerativa — o filme é dedicado à sua memória.Não se trata, entenda-se, de dar a conhecer algo que estivesse escondido ou, de alguma maneira, contaminado por informações pouco fiáveis. A esse propósito, o cartaz de Ed Sullivan: Domingos de Excelência cita uma frase que vale a pena reproduzir: “Nos primeiros tempos da televisão, quando as regras ainda estavam a ser escritas, um homem atreveu-se a desafiá-las.” Que desafio foi esse? O de conceber o seu programa como uma plataforma aberta à música negra.Convém lembrar que The Ed Sullivan Show existiu ao longo de 24 temporadas, entre 20 de junho de 1948 e 28 de março de 1971, com um total de 1068 episódios. Assim, o programa foi emitido num período de muitas convulsões sociais e políticas, desde a luta pela igualdade de direitos civis, com líderes como Martin Luther King, até ao envolvimento militar dos EUA no Vietname, passando pelos anos de esperança e tragédia da presidência de John F. Kennedy.Ao longo desses anos, muito antes da chegada dos Beatles aos EUA, Ed Sullivan franqueou as portas (ou melhor, os ecrãs) a nomes como Ray Charles, James Brown, Ike & Tina Turner, Harry Belafonte, Nina Simone, Stevie Wonder (na sua primeira parição em televisão, contava 13 anos!), os Jackson Five ou The Supremes. Sem esquecer, claro, momentos igualmente lendários como a estreia de Elvis Presley no programa, a 9 de setembro de 1956. Dito de outro modo: a abertura de Ed Sullivan à música afro-americana (não poucas vezes resistindo às pressões dos poderes mais conservadores, em particular durante as perseguições do “maccartismo”) decorria, afinal, de uma notável disponibilidade para acolher os ventos de transformação cultural que a América e o mundo estavam a viver.Na primeira filaOs resultados do documentário são tanto mais admiráveis quanto a quantidade e a diversidade de materiais de arquivo é, de facto, fascinante — além de exemplar em termos jornalísticos.Este não é um trabalho que se limite a acumular esses materiais, “ligando-os” por uma voz off banalmente descritiva, desatenta às especificidades das imagens e dos sons. Nesta perspectiva, Ed Sullivan: Domingos de Excelência envolve também uma invulgar lição de montagem. Com frequência, as performances no estúdio surgem em paralelo com acontecimentos sociais que esclarecem os laços entre “entertainment” e política. Ou como disse o próprio Ed Sullivan: “Estas actuações, sempre fantásticas, tornam-se melhores na televisão porque, ao contrário de um grande teatro, todos têm lugar na primeira fila.”