Carvalho Rodrigues, o Pavarotti dos satélites
Vive hoje retirado na sua terra natal, Casal de Cinza, terras da Guarda, na companhia de uma colecção de burros, todos com nome próprio. Na última década, entre 2011 e 2021, Casal de Cinza perdeu 13,9% da sua população, gente que vivia em lugares como Creado, Carpinteiro, Pessolta, João Bragal de Baixo, Quinta da Senhora da Póvoa, Gata ou, claro, Casal de Cinza. Depois de um acréscimo nas décadas de 1930 a 1950, o declínio de habitantes parece ser sina daquelas paragens: na década de 1960, menos 10,4%; na década de 1970, menos 23,6%; na de 1980, menos 11,8%; na de 1990, menos 10,7% e, desde então, sempre e sempre a descer, até quase não haver gente: Casal de Cinza tem hoje bem menos de metade dos moradores que lá existiam nos inícios do século XX.
Ao fixar-se no interior, há mais de dez anos, Fernando Carvalho Rodrigues, a quem já chamaram "o Pavarotti dos satélites" (ou "o pai do satélite português"), assumiu um gesto contracorrente e inesperado, no mínimo original, como muito do que fez na vida, desde logo porque veio ao mundo nos fundilhos de um país agreste e, por certo com inteligência e trabalho, muito trabalho, chegou longe, bem longe, até catedrático universitário e sócio de várias agremiações distintas: a Academia das Ciências de Lisboa (da qual foi o mais jovem membro), a Armed Forces Communications and Electronics Association, a Associação Portuguesa de Optometristas, a Academia de Ciências de Nova Iorque, a Associação Americana para o Desenvolvimento da Ciência, a Academia de Marinha, a Academia de Astronáutica da Federação Russa, a Academia de Ciência Política (de Nova Iorque), a Academia Internacional de Astronáutica e, num domínio ainda mais transcendente, a Associação de Nossa Senhora da Lapa e, em 2005, a Irmandade Militar de Nossa Senhora da Conceição, de Lamego.
No passado 5 de Março, publicou no jornal O Interior - Diário das Beiras e Serra da Estrela uma carta aberta ao presidente da câmara municipal da Guarda, increpando-o por ter fechado mais uma escola no concelho. Falou, então, numa "eutanásia social" do interior do país, numa das suas últimas intervenções de que há registo. Tamanha frugalidade do verbo não deixa de surpreender em alguém outrora tão frequente, alguém que no seu site pessoal enumera, e bem, a impressionante quantidade de condecorações auferidas, num arco temporal que começa na Guarda - a Medalha de Mérito, prata, em 1980 - e termina, também na Guarda, com a Medalha de Honra, esta em ouro, em 2023 (já havia recebido a Medalha de Ouro e de Cidadão Honorário, também da Guarda, em 2016 - no site do professor refere-se ainda a "Medalha de Honra do Município da Guarda Grau Ouro", igualmente de 2016, mas deve tratar-se de lapso de escrita, pois não é muito provável, de facto, que haja assim tanto ouro na Guarda para lhe darem logo duas medalhas desse metal e logo no mesmo ano).
No C.V. minucioso avulta ainda a comenda de Santiago da Espada, em 1992, a Medalha de Mérito Artístico e Cultural do Município da Moita e o Tributo de Carreira tributado pela Confraria Ibérica do Tejo, 2023. Recebeu o Prémio Pfizer, em 1977, dois da Gulbenkian, 1978 e 1982 (este último pelo seu trabalho no sector dos têxteis), o Prémio da Identidade Portuguesa, da Sociedade Histórica da Independência, o Prémio Boa Esperança, em 1990, e, no mesmo ano, foi feito sócio honorário da União Profissional dos Ópticos e Optometristas. Nove anos depois, em 1998, receberia o Diploma de Mérito da Associação Nacional dos Ópticos e, em 2014, o Prémio Carreira da mesma Associação. De caminho, o Meritorious Service Award, da AFCEA, em 1994, o Albert J. Myer Achievement Award, em 1996, a Medalha Lavoisier, do Comissariado de Energia Atómica de França, além de palavras calorosas do secretário-geral da NATO e do embaixador da Federação Russa junto da NATO, este numa calorosa missiva de 7 de Fevereiro de 2012 na qual saudou o contributo do "Professeur Rodrigues" para "renforcer la sécurité des citoyens des pays membres de l"Aliance et de la Fédération de Russie" (LOL). Contudo, nenhuma destas honrarias terá superado em importância, cremos, as duas distinções que recebeu quando era novo, numa precocidade premial digna de registo e nota: em 1957, quando completou a 4.ª classe, na Escola da Voz do Operário, arrecadou o Prémio Ricardo Covões; e, em 1964, quando terminou o liceu no Gil Vicente, averbou o Prémio Nacional D. Dinis (melhor aluno de 1958-1964).
Cinco anos depois, licenciou-se em Física pela Universidade de Lisboa e, em 1974, doutorou-se em Engenharia Electrotécnica na Universidade de Liverpool. Nesse mesmo ano, daria entrada na tropa, que fez às Caldas da Rainha, e onde conheceu Henrique de Jesus, Vital Moreira e Lucas Pires, todos mancebos como ele. Três anos depois - 1977, portanto -, já estava a descobrir a composição molecular do vírus da peste suína africana, em conjunto com os médicos Oliveira Soares e Moura Nunes, no cativante texto "Optical filtering in intracytoplasmic liver cell crystal and african swine fever vírus (A.S.F.V.) cylinder micrographs", apresentado ao XII Congresso de Microscopia Electrónica, Porto.
Visionário, talvez em excesso, nem sempre acertou nas previsões que fez (em 1998, no programa Falatório, de Pedro Rolo Duarte, insistiu que o futuro seriam os telefones, não a Internet, e, no seu livro Ontem, Um Anjo Disse-Me: Diálogo para o Século XXI, de 1995, prognosticou que seríamos mais felizes na actual centúria) e, de igual modo, nem sempre viu concretizados os seus projectos, como um, revolucionário, que anunciou na RTP a José Eduardo Moniz, em 1990, sobre o rastreio de todo o solo e subsolo português, até 15 metros de profundidade, feito através de satélites e de uma equipa de dez pessoas sob a sua liderança; ou outro, que visava criar uma grande Faculdade de Ciências da Engenharia na Universidade Independente, com os resultados que se conhecem.
Fernando Carvalho Rodrigues é contemporâneo da primeira vaga de divulgação científica ocorrida no pós-25 de Abril, com a emissão pela RTP, em 1980, da mítica série Cosmos. Uma Viagem Pessoal, de Carl Sagan, e com o lançamento, em 1982, da colecção "Ciência Aberta", pela Gradiva, a que se seguiu, não muito depois, a vulgarização dos computadores domésticos, ZX Spectrum e não só, e o optimismo desenvolvimentista típico dos anos 90, quando a "aposta na ciência" começou a entrar no léxico da classe política e dos opinadores de café, a época em que Agostinho da Silva, nas humanidades, e Carvalho Rodrigues, nas ciências, dois talentões do holismo, repartiram entre si o ambicionado estatuto de intelectual da TV, hoje muito vulgarizado, quiçá mesmo abandalhado. Não por acaso, em 1993 a Casa da Imprensa elegeu-o como "Cientista do Ano" e, em conformidade, deu-lhe o Prémio Bordalo.
Um tudo nada vaidoso, mas com inquestionáveis dotes de comunicador, não tardou muito, de facto, que o "professor" se convertesse numa coqueluche dos media, fosse pela sua imagem de Demis Roussos da ciência (quando foi ao Talon, em data não especificada, pesava 166,6 quilos, que depois desceria para 118, não se sabendo quantos hoje tem, ou pesa), fosse pelo seu verbo desconcertante e bem-humorado, fosse pela sua capacidade renascentista ou tudóloga de cirandar por uma infinidade de temas, em voo de besouro ou pássaro, deixando esmagados e embasbacados os jornalistas que o entrevistavam e que, no final, aceitavam a humilhação sofrida, pois no íntimo dos íntimos acreditavam que tinham vivido um momento histórico e irrepetível, único nas suas carreiras, o da conversa com um sábio ou génio, ademais gordo e bom, assaz simpático, que até os tratava a todos, sem excepção, por "o meu amigo". Entre as vítimas, Pedro Rolo Duarte, já citado, ou Carlos Cruz, na fase pré-Casa Pia, a quem o professor tanto falou de Deus, da Física e do Universo como dos seus muitos gatos, um dos quais "atrasado mental". De caminho, ou carrinho, discorreu o mago sobre a soma do todo e das partes, sobre a importância da linguagem corporal ou o peso do cérebro humano, sobre o futuro da CEE e o referendo dinamarquês a Maastricht, fez metáforas com copos partidos, citou a Bíblia e cientistas mortos, frases de Saramago, versos de Gedeão (estes para a teoria do caos e os massacres da Jugoslávia), explicou o colapso da União Soviética pela enorme massa de informação com que os russos subitamente se confrontaram. Deixou, em todo o caso, recados e alertas sensatos, como o da necessidade de protegermos o planeta e de os políticos escutarem mais a ciência, a qual dizia na altura que, se não mudássemos de rumo, o habitat natural do globo estaria completamente destruído por volta de 2020. "Não tenho uma visão muito optimista relativamente ao que os seres humanos vão fazer do planeta", afirmou, premonitório, com a razão de seu lado, mas poucos lhe deram ouvidos, até porque, logo a seguir, na recta final do programa de Carlos Cruz, Carvalho Rodrigues embrulhou-se numa teoria da informação aplicável às simulações de combate, às pestes e às grandes estruturas económicas, cuja equação essencial fora por si descoberta, disse ele, numa noite de Agosto, e à esquina da loja Lanalgo; não contente, rematou perorando sobre a cobra real e com cobra-rei e a diferente forma com que uma e outra processavam a informação (a sensação de que ali havia um bocadito de banha da cobra é talvez injusta, mas irreprimível).
"Saio desta conversa com a sensação de que a culpa é do DNA, isto é, que todos nós temos qualquer coisa a fazer neste planeta, nem que tenhamos mesmo como missão destruí-lo, para que outra coisa nasça das ruínas do que nós vamos destruir", concluiu Cruz, muito filósofo, a querer mostrar-se à altura da densidade do entrevistado (e, já agora, a fazer o bonito do apocalíptico), e assim passou Portugal o serão inteiro daquela quarta-feira, 17 de Junho de 1992, mais de hora e meia de emissão no horário nobre do canal público, o único que então existia (um espaço hoje ocupado, ao dia em que escrevemos, 3 de Julho de 2023, pelo concurso "Porquinho Mealheiro", apresentado por Vasco Palmeirim, por dois episódios seguidos da série Sou Menino para Ir - Fazer Amigos e, por fim, pelo episódio n.º 15 de S.W.A.T.: Força de Intervenção, em que, segundo a lacónica sinopse, "um amigo de Hondo morre durante uma operação do FBI").
Antes de falar do satélite convém esclarecer os incautos que aqueles retroprojectores da FOC Escolar com que nas aulas os stôres passavam os seus infindáveis acetatos tiveram, caso não saibam, o dedinho mágico do professor Rodrigues, senhor de seis patentes registadas, desde um colimador de pontaria a um interferómetro de medidas de deslocamento e flechas, passando até, pasme-se e cite-se, por uma utilíssima "máquina de desempenar canos" (INDEP, 1983). De resto, Rodrigues orgulha-se mais das inovações que fez na óptica do que em qualquer outro domínio, pese ter-se espraiado por uma infinidade de projectos, que sempre abraçou com um contagiante entusiasmo de criança: deu porradões de conferências, no país e no estrangeiro, foi especialista da NATO, investigador na Junta de Energia Nuclear, professor no Técnico e no IADE, pró-reitor da Universidade Independente, presidente do conselho geral do Politécnico da Guarda, navegou por um mar de siglas - LNETI, OGMA, CEDINTEC, AFCEA, SATCART, EID, FLAD, INETI, UNDICOM/IADE, UBI, EFACEC - até desaguar numa das últimas paixões, a dos barcos do Tejo. Fala com desvelo e carinho da sua Ana Paula, uma canoa com mais de 70 anos de vida, dez toneladas, 27 pés de comprimento e capacidade para dez pessoas. Por ela, sempre por ela, fez-se vogal do Centro Náutico da Moita, em 2004, presidente da Associação dos Proprietários e Arrais das Embarcações Típicas do Tejo (APAETT), em 2007, e, três anos depois, vice-presidente da Marinha do Tejo. Diga-se o que se disser, é extraordinária a forma como Carvalho Rodrigues se apaixona pelas suas causas, que abraça com raça e graça, quase todas ligada ao património pátrio, sejam as embarcações do Tejo, o santuário de Nossa Senhora da Lapa, os burros tradicionais ou as vacas jarmelistas.
Agora, o próprio do satélite. Mens Agit Molem - "o Espírito Domina a Matéria" - foi a frase da Eneida, também pessoana e maçónica, que Carvalho Rodrigues deixou inscrita no bojo do PoSAT-1, o lendário satélite português, lançado para os ares de Kourou, Guiana Francesa, aos 25 de Setembro de 1993. O projecto resultou, parece, da vontade política do ministro Mira Amaral e foi obra de um consórcio formado por instituições académicas (LNETI, UBI, IST) e empresariais (EFACEC, ALCATEL, MARCONI, OGMA), em cumprimento do lema "ligação universidade-empresas", que era um dos mantras da época (e que, entre o mais, dera lugar, em 1982, ao CEDINTEC, uma associação de direito privado entre o INETI e o IAPMEI). O satélite custou, na época, um milhão de contos, assim repartidos: 600 mil pelo saudoso PEDIP (Programa Específico de Desenvolvimento da Indústria Portuguesa) e 400 mil pelas entidades do consórcio, que Carvalho Rodrigues liderou entre 1991 e 1999. Consistia o prodígio numa caixinha de alumínio com 50 quilos, 35 centímetros de lado e outros tantos de profundidade, 58 de comprimento, e fez várias missões (v.g. comunicações para as nossas tropas na Bósnia e em Angola), cuja utilidade nunca foi aquilatada de forma objectiva e imparcial, o que é pena. Convertido num dos emblemas científicos do cavaquismo, o PoSAT-1 acabou sendo alvo de controvérsias mais políticas do que técnicas, e terminou no dia em que o novo ministro da Ciência, José Mariano Gago, afirmou à bruta, sem rodriguinhos, que ele "não servia para nada". Hoje navega às escuras pelo infinito dentro, em trajectória descendente: desde 2006, deixou de comunicar com o Centro de Satélites de Sintra, estando previsto que, por volta de 2043, se desintegre ao entrar na atmosfera e nos caia em cima da cabeça.
Mais do que comunicações militares, e não só, o satélite visava, dizem os seus defensores, impulsionar as indústrias portuguesas, mormente as da tecnologia de ponta. Carvalho Rodrigues culpa a desindustrialização do país pelo insucesso ou descontinuidade do seu projecto (cf. Sofia Craveiro, "Fernando Carvalho Rodrigues, O cientista que não se conteve numa só conquista", Gerador, n.º 39, Outubro de 2022), evitando assim entrar nas questiúnculas da política, um território onde, note-se, também se aventurou a seu modo: afirmando ser um monárquico "muito especial", foi desde sempre laranja e, nessa qualidade, acabou eleito para o cargo de presidente da assembleia municipal da Guarda, mandato 2013-2017.
Quanto ao satélite, o que haverá a dizer, goste-se ou não do projecto, é que ele, bem ou mal, fez-se, surgiu, aconteceu. Compare-se agora com as notícias que têm surgido sobre os seus sucessores mais recentes: em Março passado, o Público dava conta de que um novo satélite luso, feito pelo IST, estava prestes a ir para o espaço, mas que a respectiva licença dependia de uma portaria subscrita por três ministros, da qual pouco mais se soube (Público, de 18/3/2023). Antes disso, em 2017, fora assinado no Taguspark, com certa pompa e não menor circunstância, um protocolo para a erecção do Infante, nome do novo satélite português, cofinanciado pelo Portugal 2020 (cf. DN, de 18/10/2017). O lançamento do Infante estava previsto para 2020, há coisa de uns três anos, portanto, sem que se saiba, ao menos pelos jornais, o que terá sucedido. Sabe-se, isso sim, que, em Abril passado, foi lançado ao espaço um novo satélite, o qual é europeu, mas tem "assinatura portuguesa", crê-se pelo facto de o director de operações de voo ser um português, engenheiro Bruno Sousa, e a testagem de duas antenas ter sido feita também por um português, o engenheiro Luís Rolo (cf. DN, de 14/4/2023). Agora, nas últimas semanas, novas novidades: a ministra Elvira Fortunado condecorou Carvalho Rodrigues com a Medalha de Mérito Científico e, de caminho, anunciou o lançamento não de um, mas de trinta satélites até ao final de 2026 (cf. Público, de 25/9/2023). Será desta? Oxalá que sim.
Do signo Aquário (nasceu às 22h10 do dia 28 de Janeiro de 1947), Fernando Carvalho Rodrigues é crente católico e fatimista e, por ocasião do centenário das aparições, deu um depoimento dizendo que "Fátima é onde Deus pôs uma semente de fé que se globalizou" ou "um local eterno não só planetário, mas cósmico. Um dia, quando estivermos para lá do nosso planeta, o bater da fé em Fátima espalhar-se-á por muitos sistemas solares". Não descarta a existência de ovni"s e, menos ainda, de extraterrestres. Casado, sem filhos, gosta de ópera e de gatos, e chegou a ter um apartamento só reservado para os seus felídeos. Depois foi para a Guarda, onde colecciona burros, todos com nome próprio.
*Prova de vida (14) faz parte de uma série de perfis.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.