Costumam ser os filmes mais pessoais dos realizadores que revelam o âmago do seu cinema. Não é exatamente uma verdade de La Palice, mas podemos afirmá-lo em relação ao novo da francesa Mia Hansen-Løve, que depois de duas obras insípidas - Maya (2018) e A Ilha de Bergman (2021) -, ambientadas na Índia e na ilha de Fårö, regressa à Paris natal numa espécie de reencontro consigo mesma. Assim acontece porque Un Beau Matin encerra algo da realidade que marcou a vida da cineasta no último ano. A saber, uma realidade ligada à doença do pai, um académico cuja perda das faculdades mais preciosas (para um homem dedicado ao pensamento) inspirou a criação de um contraponto ficcional luminoso. Esse contido no título que, já agora, cita um poema de Jacques Prévert sobre a ausência: aquilo que se sente e já não está..Protagonizado por Léa Seydoux, aqui maravilhosamente reduzida ao essencial da sua bagagem dramática, longe do glamour e sofisticação das mais recentes produções internacionais, Uma Bela Manhã apresenta-nos Sandra, uma mãe solteira, viúva há cinco anos, que divide os dias entre visitas ao pai doente, caminhadas para ir levar e buscar a filha à escola e um trabalho como tradutora-intérprete freelancer. Uma mulher feita personagem secundária do seu próprio quotidiano, que numa "bela manhã" encontra uma amizade antiga, Clément (Melvil Poupaud), como quem encontra uma promessa de luz nessa existência monocórdica. Em pouco tempo os dois estão envolvidos num intenso caso amoroso, com o obstáculo de ele ser casado e sentir-se incapaz de deixar a mulher e o filho, por sentido de dever..Sem sublinhar qualquer "ordem de acontecimentos", o filme de Hansen-Løve acompanha a naturalidade da vida, as forças que a influenciam, e dá conta do modo como esta mulher, dentro de uma certa variação de angústias agora espaçadas por uma paixão fogosa, vai alcançando um protagonismo sereno, à procura de algo que se assemelhe a uma ideia de futuro. É por isso, e não só, que Uma Bela Manhã está tão próximo de outro dos melhores filmes da realizadora: O Que Está Por Vir (2016). Naquele retrato feminino assegurado por Isabelle Huppert, que interpreta uma professora de Filosofia sexagenária, a divorciar-se ao fim de 25 anos, também se impunha rever o padrão de "felicidade" perante a incerteza do futuro. Sendo que a analogia entre os dois filmes se torna ainda mais evidente pelo facto de o pai de Sandra, em Uma Bela Manhã, Georg (Pascal Greggory, gigante na sua debilidade humana), tal como a personagem de Huppert, ser um antigo professor de Filosofia. No caso, alguém com uma doença neurodegenerativa rara (síndrome de Benson), que afeta a visão mas igualmente a linguagem e a memória..Esta condição frágil, que se torna galopante e o impede de continuar a viver sozinho no seu apartamento recheado de livros, é um dos aspetos que provocam o silencioso caos emocional de Sandra. Não só pela provação da família que tenta encontrar o espaço mais digno para Georg, circulando de lar em lar à espera de vagas e à mercê da burocracia, mas sobretudo porque separar o homem das suas estantes de livros é como desligá-lo de um elemento vital. Como diz a filha, os livros são a alma dele. Da mesma forma que, em O Que Está Por Vir, é através dos livros e de citações de grandes filósofos que a protagonista se mantém ancorada no seu universo intelectual - dado importante: ambos os pais de Mia Hansen-Løve eram mesmo professores de Filosofia -, também em Georg são esses volumes de páginas que nos dizem quem foi aquele ser antes de se tornar um corpo perdido, incapaz de fazer sentido em frases simples. O "nada em pessoa" de que fala o poema Un beau matin, de Prévert..É profundamente comovente que Hansen-Løve tenha optado por dar esta centralidade aos livros (vejo-os como muito mais do que motivos de uma subtrama), mostrando inclusive a solução encontrada pela personagem de Seydoux para não perder o rasto desses objetos anímicos. De resto, atente-se nos close-ups que a realizadora faz das lombadas de alguns deles, como quem oferece a eternidade ao pai, ou lhe endereça uma carta através da imagem mais justa..A par disto, dir-se-ia que o outro grande apontamento de Uma Bela Manhã passa pela ideia da velhice. Não é por acaso que ouvimos por duas vezes Seydoux/Sandra, uma mulher ainda jovem, ora protestar por lhe chamarem "senhora" ora declarar que a sua vida sentimental é coisa do passado, como se já não valesse a pena reabrir capítulos fechados na sua idade. Junta-se a estas referências a cena de uma visita à mãe de Georg (interpretada pela avó da realizadora, Jacqueline Hansen-Løve), uma idosa quase centenária que se recusa a ser olhada com pena pelas pessoas na rua. São detalhes magníficos de um argumento carregado de melancolia subtil, que tanto se deixa atravessar por um humor caloroso como nos envolve numa consciência de finitude só apaziguada pelo desejo. Hansen-Løve fez o seu filme de emoções mais resplandecentes, comprometido com uma beleza que estreita o significado das palavras viver, cuidar, trabalhar e amar. Sem receitas, mas com Schubert, Kierkegaard e uma sensação de abismo perfeitamente traduzido numa estética existencial..dnot@dn.pt