Canções do outro lado do mundo

Vem do Norte da Austrália e sobe esta sexta-feira ao palco do Teatro Tivoli, em Lisboa, com canções tradicionais aborígenes. Ngulmiya, cantor, músico e pedagogo, pensa que a arte é a melhor resposta ao racismo.
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Ngulmiya, o filho, Mayurryurr, e o seu agente, Anthony Gray, vieram de muito longe. Fizeram cinco horas de voo do Norte da Austrália até Sidney, depois mais 14 horas até Londres e, finalmente, mais duas até Lisboa. Mas sendo esférica a Terra e a História de Portugal o que é, talvez não seja de surpreender que, ao contar histórias tradicionais da sua gente, o cantor interrompa o discurso do seu inglês austral e use termos que nos são familiares como malaio (referindo-se aos naturais da Malásia) ou algo muito próximo de "proa" para designar a parte dianteira dum barco. Não sendo de surpreender, ainda assim surpreendemo-nos, e arrepiamo-nos um pouco, até porque as histórias de quem vem dos antípodas não assim tão diferentes das nossas: falam de amor, de saudade, do respeito pelos antepassados e do mar.

Mas comecemos pelo princípio: Ngulmiya vem a Portugal para cantar esta noite no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, no âmbito da edição de 2022 do Festival Womex, consagrado às músicas do mundo. Acompanhá-lo-ão o filho, Nayurryurr Nundhirribala, Luke Howard no piano e sintetizador, e Emma Williams no violino. O concerto assinalará a estreia mundial do seu novo álbum, gravado (via teleconferência) com a Orquestra Art de Budapeste. Ngulmiya vem de Numbulwar, Arnham Land, um lugar remoto na costa Norte da Austrália, a muitas horas de viagem de cidades como Sidney, Melbourne ou Camberra. E, segundo o seu agente, "estas canções evocam uma vida de isolamento, em que a maior ligação, por via marítima, se faz sobretudo com a Indonésia. São canções cerimoniais muitas delas, mas também as há sobre as relações comerciais e culturais do seu povo com os comerciantes vindos do Sudeste Asiático." Num caso como noutro são todas muito antigas, a maior parte das quais nunca foi cantada em público, num palco, fora do seu contexto original. Ngulmiya apressa-se a esclarecer que, embora tenham sido arranjadas para piano e orquestra, estas são as canções que herdou do pai e que este, por sua vez, as herdara do pai dele. A devoção pelo legado dos seus antepassados estará, aliás, omnipresente ao longo da conversa.

"O meu pai começou a ensinar-me estas canções quando eu era criança", conta. "São sobretudo canções de oração, que ele me cantava à hora de dormir. Podemos dizer que são centenárias porque são passadas de geração em geração desde tempos imemoriais. Continuar a cantá-las é muito importante para mim porque é uma forma de honrar o meu legado e os meus antepassados. E o meu filho, que me acompanha neste concerto, está já a fazer a sua parte." Ao pai deve também Ngulmiya a opção profissional pela música: "O meu pai era, de certo modo, um visionário e compreendeu que a minha vida seria cantar. Incentivou-me muito. Ainda hoje, anos depois da sua morte, sinto a sua presença e bênção antes dos espetáculos. Procuro ser fiel a essa visão do futuro que ele teve".

Para além de cantar, Ngulmiya é também compositor, bailarino e pedagogo. Integra o grupo de dança Red Flag, dirige o Numburindi Festival, e colabora frequentemente com o Ballet Nacional da Austrália e com o Bangarra Dance Theatre. Embora afirme que não trata de assuntos políticos no seu repertório, não deixa de admitir que, no seu país natal, a aceitação dum artista de origem aborígene ainda não é a que deveria ser. Anthony Gray, o agente, diz mesmo: "Estamos muito felizes com o acolhimento aqui em Lisboa porque, por vezes, na Austrália, fazemos muitos quilómetros para nos apresentarmos num concerto e está muito pouca gente." Ngulmiya pensa que, "apesar de algumas resistências aqui e ali, as coisas estão melhores, já há um entendimento, mesmo institucional, de que a cultura aborígene é parte importante da cultura e das tradições australianas." Ainda assim, sempre que há um concerto, recomenda ao filho "que se concentre na música, no significado que ela tem para o nosso povo e ignore qualquer indício de hostilidade que possa surgir." Mas também gostaria que a sua música não fosse etiquetada como folclórica ou étnica: "Apenas quero fazer a melhor música que possa e chegar ao maior número possível de pessoas. E acredito que esta vinda a Lisboa possa vir a ser uma porta de entrada na Europa."

Com um sentido pedagógico apurado, Ngulmiya quer mostrar aos jovens do seu povo que "é possível levar a sua cultura aos grandes palcos internacionais." E conclui: "Essa é a melhor resposta que podemos dar ao racismo e ao isolamento".

dnot@dn.pt

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