“Canaletto e Guardi são os protagonistas indiscutíveis do vedutismo veneziano”
FOTO: Paulo Spranger

“Canaletto e Guardi são os protagonistas indiscutíveis do vedutismo veneziano”

Donato Salvatore, professor de História da Arte Moderna da Universidade de Salerno, conversou com o DN sobre exposição 'Veneza em Festa', que está patente na Gulbenkian, em Lisboa, até 13 de janeiro.
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Sobre as diferenças e semelhanças entre Canaletto e Guardi, o que se pode dizer?
Canaletto e Guardi, os dois protagonistas indiscutíveis do vedutismo, a pintura de paisagem do século XVIII em Veneza, floresceram em diferentes épocas do século: Canaletto, mais velho, era um pintor muito procurado já na década de 1720, Guardi estreou-se como pintor de vistas apenas em final da década de 1750. E vale ressaltar que o artista mais jovem apresenta nas suas telas, com significativa frequência, composições inspiradas diretamente nas pinturas de Canaletto. No entanto, e sem deixar de considerar mudanças significativas nas respetivas produções figurativas, é possível observar características de estilo que distinguem significativamente os dois mestres venezianos: Canaletto cria vistas de Veneza imersas numa luz clara e cristalina que realça o rigoroso sistema de perspetivas e perdura meticulosamente nos detalhes da composição, restaurando a verdade e a vivacidade representativas; Guardi, por sua vez, utiliza preferencialmente pinceladas largas e vibrantes e contrastes acentuados de claro-escuro que traem os contornos dos pormenores individuais e acentuam o caráter atmosférico da vista, sublinhando, também através do uso de uma estreita gama de cores, as qualidades evocativas da pintura em detrimento do valor objetivo da representação.

O vedutismo é um fenómeno veneziano ou existe noutras cidades italianas?
A pintura de vista tem uma ampla difusão em Itália e está ligada sobretudo aos centros urbanos principais. Veneza, sobretudo no século XVIII, com a produção de Canaletto e Guardi, mas há pelo menos duas outras cidades em Itália que têm uma tradição muito longa de pintura de paisagem: Roma e Nápoles. Roma caracteriza-se por uma produção de vistas ligadas aos testemunhos dos tempos antigos, por um lado, e da Roma moderna, por outro. O interesse dos artistas pelos monumentos da antiguidade que estão constantemente representados, já nos séculos XVI e XVII, é muito significativo. A cidade de Nápoles tem também uma longa tradição de vistas, a partir de um painel pintado do último quartel do século XV, a chamada Tavola Strozzi, que é o primeiro exemplo de representação da cidade. Nos séculos seguintes, é uma cidade muitas vezes representada, com muita pintura de vistas durante os séculos XVII e XVIII. Por outro lado, tanto Roma como Veneza e Nápoles estão unidas por serem palcos do Grand Tour, ou seja, locais que eram visitados por toda a nobreza europeia, pelos jovens descendentes da nobreza europeia, que através da viagem a Itália adquiriram conhecimentos, a possibilidade de aprofundar a sua cultura. O Grand Tour, a viagem a Itália, foi um momento essencial na educação das jovens gerações da nobreza europeia. Naturalmente, não é só em Itália que existe uma pintura de vistas. Na Europa penso sobretudo na pintura inglesa dos séculos XVIII e XIX, mas devo dizer que a visão urbana caracteriza a produção pictórica italiana de uma forma particular em comparação também com a pintura de outros países.

Pensamos muito na pintura italiana como sendo a de Da Vinci, Rafael, Miguel Ângelo, que viveram todos na transição do século XV para o século XVI, mas depois temos esta dupla de Canaleto e Guardi no século XVIII. Poderíamos dizer que existem dois grandes momentos da pintura italiana ou existe uma continuidade? Este vedutismo veneziano é, portanto, apenas mais um momento da arte italiana?
Há um momento particularmente significativo na produção pictórica em Itália e é aquele ligado ao Renascimento, portanto à fase dos finais do século XV e inícios do XVI. Quando se pensa em arte italiana, vêm-nos sempre à cabeça os nomes de Leonardo, Rafael, Miguel Ângelo. É de facto um momento particularmente significativo, mas é um momento após o qual se verificará uma evolução constante e contínua da produção artística. Mesmo na cidade de Veneza, no que diz respeito à pintura do século XVI e do século XVII,  vem-me à memória artistas de grande importância, como Ticiano, por exemplo, ou Veronese e Tintoretto, que representam com efeito uma tradição que vem de trás. Mas, com o passar do tempo, estes artistas representarão também um modelo de referência para os artistas subsequentes, pelo que nunca poderemos pensar em fases distintas na produção da história da arte. Veneza tem um elo de continuidade que envolve todo o território da Península Itálica na sua pluralidade de manifestações. A Itália é sempre um lugar de produção policêntrica.

Canaletto é mais famoso do que Guardi. É justo?
Posso dizer, porque isso é atestado pelos factos e pela documentação que temos, que Canaletto em vida foi um pintor muito bem sucedido, muito afortunado, que também obteve avaliações económicas muito elevadas das suas pinturas durante a sua vida. O mesmo não aconteceu com Guardi, mas os nossos critérios de julgamento e avaliação da qualidade dos artistas não correspondem naturalmente à avaliação económica que as pinturas tiveram. Canaletto e Guardi são dois artistas que apresentam diferenças assinaláveis significativas entre si, mas não há possibilidade de fazer uma avaliação objetiva da qualidade em termos absolutos. Canaletto foi um artista que obteve um enorme sucesso entre os clientes ingleses, sobretudo entre os que se deslocaram a Itália, mas também de uma forma mais geral. Os ingleses tinham uma particular predileção pela pintura de Canaletto, aspeto menos significativo no que diz respeito a Guardi. Mas Guardi era visto como um precursor da pintura do final do século XIX e, por isso, a cultura posterior desse período olhava para Guardi com maior interesse do que para Canaletto. Canaletto parecia um pintor mais frio e esquemático, enquanto Guardi parecia aos olhos da sensibilidade oitocentista um pintor capaz de transmitir com maior força psicológica uma evocação da paisagem, aspeto certamente considerado por aquele tipo de cultura. Em relação aos artistas, a sua qualidade deve ser sempre historicizada, ligada às mudanças, às mudanças de gosto.

Quem realmente adora Canaletto e Guardi, em que museus os pode ver?
Tanto Canaletto como Guardi são pintores que produziram muitas obras, e muitas destas obras encontram-se hoje em todos os museus mais importantes do mundo e naturalmente existem locais que podemos considerar privilegiados pelo conhecimento da sua obra. Penso em particular no museu Carezzonico, o museu da Veneza do século XVIII, onde se conservam várias obras de ambos. A outra consideração que se pode fazer a este respeito está ligada ao grande número de obras, especialmente de Canaletto, que se conservam nas coleções reais inglesas. Porque através de um inglês residente em Veneza, Joseph Smith, as coleções reais inglesas adquiriram muitas obras de Canaletto desde a segunda metade do século XVIII. E se hoje entrar nas páginas do Royal Collection Trust, encontrará online muitas pinturas que pertenceram a Joseph Smith e depois passaram para a coleção inglesa.

Significa que, por exemplo, na National Gallery de Londres haverá muitos Canalettos?
Há muitos lá também, mas muitos, ainda mais do que os que estão guardados na National Gallery, estão na Coleção Real e, portanto, pertencem às coleções reais de Inglaterra.

Mas podem ser visitados?
Dificilmente, muitos encontram-se no Palácio de Buckingham ou no Castelo de Windsor, ou seja, nas residências reais inglesas. O que podemos fazer é conhecer e estudar estas obras através do site, o que está muito bem conseguido, pois permite ter uma ideia precisa de quantas e quão importantes são as obras encontradas naquele acervo. A presença de muitas obras de Canaletto em Inglaterra está ligada precisamente ao apreço que os ingleses desenvolveram imediatamente em relação a Canaletto e depois, de forma mais relativa, a Guardi. Tanto isto é verdade que uma figura tão importante como Smith adquiriu uma rica coleção de pinturas encomendando-as diretamente ao pintor.

Destes pintores, na coleção Gulbenkian, o que se destaca?
A obra mais significativa que faz parte do espólio do Museu Gulbenkian é a pintura de Guardi que representa a Praça de São Marcos no dia da chamada festa da Ascensão, como se diz em Veneza. A Praça de São Marcos é enriquecida por uma série de dispositivos efémeros que serviam para expor mercadorias e produtos artesanais e foi a forma como a praça foi montada no dia da festa da Ascensão que ele pintou. E é uma pintura de extraordinária qualidade que mostra a capacidade de Guardi em retratar com um traço vibrante o contexto urbano e a praça mais significativa de Veneza que é a Praça de São Marcos, no final da qual se pode ver a fachada da Basílica dedicada ao Santo.

O que nos oferece esta exposição em Lisboa?
A exposição Veneza em Festa no Museu Calouste Gulbenkian deve ser considerada uma oportunidade preciosa para valorizar, contextualizando-a adequadamente, uma parte considerável da riquíssima coleção lisboeta relativa à arte figurativa veneziana do século XVIII. A colaboração com o Museu Nacional Thyssen-Bornemisza de Madrid enriquece ainda mais o diálogo estreito entre Canaletto e Guardi, os dois principais protagonistas da exposição, autores de representações deslumbrantes da cidade de Veneza e de refinados Capricci, vistas fantasiosas, que representam uma tradição popular subgénero da pintura de paisagem do século XVIII. A configuração arejada e essencial, através do distanciamento adequado entre as obras e da iluminação cuidada, garante uma excelente usabilidade, que beneficia ainda de exaustivos painéis informativos. A escolha dos curadores em oferecer amplo espaço à produção contemporânea de gravuras que Antonio Visentini fez a partir das telas de Canaletto parece altamente apreciável, permitindo assim que a exposição renove a relação direta entre pintura e produção gráfica que constitui um dos aspetos determinantes do fortuna do género vedutismo em Veneza.

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