A “Sala de Reuniões Internacionais”, no seio da Academia das Ciências de Lisboa, acolhe o mundo até 28 de fevereiro de 2025. O mundo na dimensão geográfica, tangível, mas também aquele que se expandiu a partir da obra de um português do século XVI, Luís Vaz de Camões. A expressão global do poeta, materializa-se no mapa que abre a exposição “Camões Universal”. Aqui, no planisfério, passeamos o olhar, entre outras localizações, por Lisboa, Salamanca, Barcelona, Paris, Turim, Dublin, Londres, Amesterdão, Praga, Estocolmo, Cracóvia, Bucareste, Moscovo, Nova Iorque, Rio de Janeiro, Tóquio e Seul. Uma jornada global que antecipa o acervo em mostra, dividido em oito momentos, todos eles ilustrativos da expansão das traduções da obra camoniana num período de cinco séculos. A exposição integra-se no âmbito mais alargado das Comemorações do V Centenário do Nascimento de Luís Vaz de Camões. . “Que língua celebramos quando Camões e a sua obra se festejam? A língua portuguesa, certamente. Mas também as outras línguas que fizeram do português de Luís Vaz de Camões uma língua universal. É esta a ideia básica de uma exposição concebida para mostrar a projeção internacional de uma obra traduzida em múltiplas línguas”. Palavras de José Luís Cardoso, Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, na introdução que assina no catálogo que serve a exposição. .A exposição que se corporiza numa progressão cronológica, permite ao visitante perceber as singularidades, os artifícios e as condicionantes de cada época, lugar e autores que imperaram nas traduções da obra do poeta português. .A inauguração a 27 de novembro da exposição “Camões Universal” foi momento para escutar as palavras daqueles que, nos últimos meses, reuniram o acervo em mostra. Uma exposição que vive das coleções da Academia das Ciências de Lisboa que, recentemente, beneficiou da doação da biblioteca camoniana do empresário Manoel Queiroz Pereira; assim como da parceria da Biblioteca da Faculdade de Letras Universidade de Lisboa e da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa. .“Este é o lugar certo para uma exposição bibliográfica como esta, não apenas por ser um lugar de livros, como pela força da memória camoniana que a Academia das Ciências de Lisboa encerra. Sabemos que nem todos os camonianos foram ou são membros da Academia, mas sabemos que muitos o foram”, recordou José Luís Cardoso na sessão de abertura da mostra. O momento serviu ainda para recordar o inventário das coleções de memórias, conferências e monografias da autoria de membros da Academia, hoje digitalizados e disponíveis no site da instituição. Também presente no ato que marcou a abertura ao público da exposição, esteve a sua comissária, a camonista e investigadora no Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Isabel de Almeida, responsável pela seleção das obras expostas e pela elaboração dos textos que acompanham a exposição e o catálogo. .É com Isabel de Almeida que empreendemos uma visita informal à exposição. “Esta mostra resulta da consciência de que faz falta uma ideia global do que foi a difusão dos Lusíadas, nomeadamente através das suas traduções. Este é um campo que ainda implica muita investigação. Em concreto, interessou-nos apresentar de uma forma muito simples e clara, numa linha temporal muito evidente, a natureza das traduções ao longo dos séculos. Do século XVI até ao século XXI, temos uma noção de como no espaço e no tempo o processo de tradução vai evoluindo. Os livros expostos são a forma clara deste fenómeno”, sublinha a camonista que enfatiza a presença de duas obras seminais do poeta, “no fundo as duas primeiras obras em que nos surge texto publicado de Camões, a ‘Ode ao Conde do Redondo’, publicada pela primeira vez nos Coloquios dos Simples e Drogas (1563), do médico Garcia de Orta e, também, Os Lusíadas, impressos em Lisboa em 1572”. .A primeira edição de Os Lusíadas, datada de 1572.Foto: Reinaldo Rodrigues.Camões “além e aquém dos Pirenéus”.A mostra avança para um outro tempo, o das primeiras traduções. No período da Monarquia Dual (1580-1640), foram impressas quatro traduções, para castelhano, d’Os Lusíadas. “No plano literário e cultural há um desejo de integração ou de apropriação que dificilmente deixará de se relacionar com este quadro político”, escreve Isabel de Almeida nas notas que acompanham a mostra. Na tradução de Manuel de Faria e Sousa, a Camões cabe o estatuto de “príncipe de los poetas de España”. .“Cada tradução tem a sua história. Precisamos ainda de conhecer a fundo cada uma destas traduções, eventualmente se há ligações entre estas e o que acontece ao texto de Camões quando transposto para uma outra língua”, destaca Isabel de Almeida, para continuar: “só será possível a ligação que referi quando houver estudos atentos. Para já, há alguns trabalhos, há sínteses valiosas, mas estamos a precisar de monografias, de trabalhos de investigação profunda sobre cada uma destas obras. Há que percebê-las na relação com o seu contexto e na relação de Camões e outros poetas. Quando avançamos para o Norte da Europa, há menos trabalho produzido, nomeadamente na Dinamarca e na Suécia. Por exemplo, no século XIX, houve um grande trabalho de tradução de Camões na Alemanha, que ainda carece de acompanhamento”. Palavras da camonista que nos servem de preâmbulo a desvendar um outro momento da exposição, “Além e aquém dos Pirenéus”. Em 1655, Richard Fanshawe, secretário do embaixador britânico em Madrid, compõe uma versão inglesa da epopeia camoniana: The Lusiad. Na mesma época, saía dos prelos lisboetas Lusiada Italiana, obra do procônsul genovês Carlo Antonio Paggi. Somente no século XVIII Os Lusíadas entram no campo literário francês e no vasto mundo francófono, com traduções em França (1735), na Rússia (1788) e na Polónia (1790). As traduções francesas setecentistas expandiram a receção d´Os Lusíadas. A propósito do momento da exposição intitulado “William Julius Mickle – Reinventar os Lusíadas”, Isabel de Almeida comenta como “muito curiosa a edição de 1776 de The Lusiad. O escocês Julius Mickle, traduziu com grande liberdade e redigiu extensos paratextos e viu a obra como aplicável ao enaltecimento e à definição do rumo do império britânico”. .Tradução de Os Lusíadas para castelhano.Foto: Reinaldo Rodrigues.“Camões não morre e o seu texto persiste à ação devoradora do tempo”.“No início do século XIX, a Alemanha entra no mapa das traduções d´Os Lusíadas. Acompanhá-la-iam, a norte, na área da Escandinávia, a Dinamarca, a Suécia e a Noruega; a sueste o império austro-húngaro. Em Viena retomou-se, nos anos de 1816 e 1828, a versão alemã de 1807; em Peste, em 1865, publicou-se uma nova versão da épica camoniana - Luziáda (...) Do outro lado do Atlântico, despontava o interesse por Camões”, lemos no catálogo à exposição na parte intitulada “Um mapa em expansão – Europa e América do Norte”. Isabel de Almeida recorda, neste contexto, “uma gramática publicada nos Estados Unidos no século XIX que pretendia facilitar aos jovens estudantes e ao público americano em geral a aquisição da língua de Camões. Alguns exemplos eram retirados d´Os Lusíadas”. Na época, a Europa assinalava iniciativas sobre Camões. Neste contexto destaca-se a edição d´Os Lusíadas pelo Morgado de Mateus, em Paris, no ano de 1817; um tempo em que nas artes, no teatro e na ficção surgem obras centradas na vida do poeta. São, também, reeditadas traduções mais antigas. “Há versões bastante fiéis ao texto camoniano, como I Lusiadi (...) Recati in ottava rima da A. Briccolani (Paris, 1826), enquanto sobre outras a censura paira como uma sombra”, lemos no catálogo que acompanha a exposição. Acrescenta Isabel de Almeida com as suas palavras: “uma tradução em 1842, do francês François Ragon explica que o poema de Camões mereceu alguns cortes, por considerar o autor serem passagens de mau gosto ou redundantes. Na realidade, só num ponto ou noutro é que há uma verdadeira censura, pois o autor transfere para notas o que subtraiu ao texto. Por exemplo, não traduz a insinuação da relação incestuosa entre Vénus e o seu pai, Júpiter”. .A mostra prossegue para as “Celebrações oitocentistas – O tempo dos aniversários”, em particular para a onda comemorativa de 1880 e com a sucessão de traduções: The Lusiad of Camoens (1880), de Robert Ffrench Duff; três traduções foram editadas em Madrid, Badajoz e Barcelona ainda na década de 1870. Uma viagem ao universo camoniano que, na exposição em apreço, culmina nos “Séculos XX e XXI”, período em que se multiplicam as reedições e as traduções. China, Japão, Coreia do Sul, Índia, Indonésia, Turquia passaram a contar com traduções do poema épico. Uma versão para árabe foi também produzida. .Para Isabel de Almeida, comissariar a exposição “Camões Universal” foi “uma experiência muito importante, por me deter em questões que ainda não tinha aprofundado. Apenas lamento não termos mais livros para exibir. Seria importante alargar a mostra no que respeita ao século XXI, nomeadamente com a expansão do texto pela Ásia. De resto, só precisamos de prestar atenção a Camões para percebermos que a visão do poeta envolve questões que continuam a ser válidas no presente: o que procuramos na vida, que valores estabelecemos para a nossa conduta, aceitamos a justiça ou escandalizamo-nos perante ela; como integramos a beleza e formas de sublime. Deste ponto de vista, Camões não morre e o seu texto persiste à ação devoradora do tempo”. .No âmbito das comemorações do quinto centenário do nascimento de Luís Vaz de Camões, a Academia das Ciências de Lisboa agenda para maio de 2025 o colóquio intitulado “Camões e os Saberes”, centrado no impacto da obra do poeta no conhecimento científico.