Bruno de Almeida: “Quando faço música, penso sempre em filmes”

Bruno de Almeida: “Quando faço música, penso sempre em filmes”

Conhecemo-lo sobretudo como realizador, mas o percurso de Bruno de Almeida começou com uma guitarra na mão e uma extraordinária vivência nova-iorquina. Memórias que circulam no álbum 'Cinema Imaginado', em três volumes, sobre os quais conversou com o DN – na qualidade de músico.
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Escutar imagens em movimento. Imagens-fantasma. É mais ou menos essa a proposta de Cinema Imaginado, uma trilogia de discos e álbuns digitais (lançados desde 2022) que se completa agora, fechando um conceito em tudo aberto à riqueza das sonoridades: vai-se do jazz ao funk, com desvios em esquinas inesperadas, como aquela que lança um feitiço estilo Nino Rota, ou outra que simula a febre e o suspense do film noir. Reunindo dezenas de músicos, que começaram por trabalhar à distância, entre Lisboa, Nova Orleães, Nova Iorque e a Bahia, o realizador de A Arte de Amália e Cabaret Maxime fez o seu filme “para ouvido ver”. 

Antes de se tornar realizador, na década de 90, o Bruno já estava numa relação com a música... Daí que este álbum em três capítulos não seja uma completa surpresa. Mas, ainda assim, o que é que o fez regressar à música nestes últimos anos? 
Cinema Imaginado foi uma consequência do confinamento [pandemia de covid-19]. Porque foi nesse período, em que não estávamos a fazer nada, que decidi organizar os meus arquivos – o que me levou a uma caixa cheia de cassetes e pautas, coisas que tinha feito na segunda metade dos Anos 80, quando já estava em Nova Iorque. E ao ouvir esse material, no processo de passá-lo da cassete para o digital, decidi espontaneamente começar este projeto. Isso levou-me ao contacto com músicos com quem tinha trabalhado há muitos anos, como o [cornetista] Graham Haynes, e... foi assim! 

Portanto, foi ao fundo do baú mas criou temas de raiz. Temas que invertem a lógica da banda sonora para cinema, porque provocam imagens que não existem... 
É um pouco como continuar a fazer filmes, mas “filmes auditivos”. Acho que a música do projeto todo reflete imagens. As pessoas têm-me dito muito que imaginam um filme enquanto estão a ouvir o disco, e no fundo foi essa a minha ideia: é como se fosse a banda sonora para um filme que não existe. A música tem uma componente visual, uma sugestão de cinema. 

E que imagens lhe ocorreram no processo de criação? 
Há muita coisa que vem do meu próprio passado, que tem a ver com o universo de Nova Iorque. Mas há também outras músicas que não têm relação com nenhuma história ou cena em particular, vêm apenas de ambientes que eu imagino como sendo fílmicos, cinematográficos. 

Há aqui uma voz, uma personagem, que faz parte da identidade das músicas. De onde é que ela vem? 
A personagem é uma espécie de alter ego. É um tipo solitário, escritor, que faz um bocado parte do ambiente underground nova-iorquino... É baseado numa pessoa que conheço. O que não significa que seja sempre, sempre a mesma personagem. Há ali a ideia de um indivíduo inconformista – um flâneur, se quisermos. A voz dele acaba por ser um fio condutor, alguém que vai contando umas histórias, umas vignettes. 

De um ponto de vista pessoal, quais são as memórias que o Bruno tem de Nova Iorque no período que já referiu – Anos 80 –, enquanto cidade onde viveu durante 25 anos e estabeleceu o seu grupo de atores? 
A segunda metade dos Anos 80 em Nova Iorque foi particularmente interessante. Uma altura em que houve uma série de acontecimentos nas artes, relacionados com o cruzamento de música, dança, pintura, isto é, uma mistura de graffiti, o começo do Hip hop... Nova Iorque era um centro muito específico de criatividade. Algo que mudou bastante ao longo das décadas: a cidade foi-se tornando mais segura, mas também mais comercial. Naquela época era muito fácil um artista de qualquer área ir para lá viver; arranjava-se trabalho com imensa facilidade. No meu caso, cheguei a Nova Iorque com 18 anos, o que quer dizer que os meus anos formativos foram lá, nessa atmosfera incrível onde... 

...Havia um sentido de risco. 
Exato, havia um sentido de risco, um sentido de aventura, de aceitação de qualquer experiência. Foi um período muito experimental. E eu estive nesse universo com o Graham Haynes, meu colaborador – fizemos muita música experimental na Knitting Factory e na Roulette, que são aqueles centros de música improvisada, em contacto com a eletrónica, havendo já aí uma relação forte com o cinema. Quer dizer, passávamos os dois o dia inteiro numa sala de cinema, a ver filmes do meio-dia à meia-noite, e depois íamos diretamente para o palco do Knitting Factory e tocávamos improvisando em função daquilo que tínhamos visto... Isso levou-me a querer ser compositor de bandas sonoras (houve uma altura em que cheguei a fazer música para dança), ainda fui a Roma tentar estudar com o Ennio Morricone (risos), e depois acabou por ganhar o cinema... Embora eu considere que são artes muito próximas. Portanto, a música aqui tem muito a ver com o imaginário dessa época: uma Nova Iorque que era mais perigosa mas ao mesmo tempo mais criativa, onde tudo podia acontecer. E agora quando faço música, penso sempre em filmes. Sou um cineasta, para todos os efeitos. 

As capas dos três volumes são uma espécie de reflexo da paisagem musical que contêm. Como é que as escolheu?  
Isto são fotografias do Camilo José Vergara, um fotógrafo chileno, mas nova-iorquino, que eu gosto muito. Quando estava à procura de um conceito para a capa, enfim, para o projeto, redescobri o trabalho dele. É um tipo muito interessante, que nos Anos 70 documentou uma série de bairros mais pobres, ao lado de Manhattan, e recentemente voltou lá para fazer fotografias iguais às que tinha feito na altura... E pronto, as imagens dele pareceram-me estabelecer uma boa relação com a ideia da cidade. 

Numa altura em que os suportes físicos vão caindo em desuso – e penso sobretudo no DVD –, esta trilogia também implica um brio material... 
O CD, curiosamente, está a voltar. Aliás, fiz um vinil do primeiro volume, que até vendeu bastante bem, pensei fazer o mesmo para os outros volumes, mas o que tenho descoberto nas lojas é que o CD está a voltar! As pessoas gostam de ter o objeto.  

As capas dos três volumes de Cinema Imaginado com as fotos de Camilo José Vergara, um fotógrafo chileno, mas nova-iorquino.

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