Bordado marroquino

Amor, afeto, homossexualidade e saber artesanal - com estas linhas se cose <em>O Azul do Cafetã</em>, de Maryam Touzani. Um olhar delicado sobre um tema tabu na sociedade marroquina e as emoções que se escondem na intimidade de um casamento.
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Segunda longa-metragem de Maryam Touzani, O Azul do Cafetã surge como uma sequência natural do primeiro filme desta realizadora marroquina. Recorde-se: nesse filme, Adam (2019), uma viúva com uma filha de oito anos e uma jovem solteira e grávida que lhe bate à porta unem-se à volta do trabalho numa padaria de produção artesanal. É um retrato da amizade feminina, com o seu tempo próprio de "cozedura". Agora, no novo filme, temos um mestre costureiro de cafetãs (túnicas árabes bordadas), Halim, que trabalha num pequeno estabelecimento gerido pela esposa, Mina. Um negócio frágil, com um ritmo diferente do comércio mais moderno, que para sobreviver precisa de dar resposta às encomendas em atraso. É nesse contexto que surge o terceiro elemento da história, Youssef, um aprendiz muito aplicado, que rapidamente desestabiliza a atmosfera ordeira...

Na matéria específica dos filmes de Touzani fica desde logo evidente o gosto pela conjugação da sabedoria artesanal com a intimidade humana. E esse aspeto é particularmente relevante em O Azul do Cafetã, porque os sentimentos cambiantes que unem as três personagens têm um reflexo sugestivo no labor manual de mestre e aprendiz. Mais: a passagem do tempo no filme corresponde ao bordado minucioso de Halim no cetim de um cafetã azul petróleo, cuja entrega não parece estar para breve... O costureiro preocupa-se com a mulher, que disfarça os sinais de uma doença grave, mas chega a altura em que já não é possível a Mina estar todos os dias atrás do balcão a atender clientes arrogantes. O espaço da casa torna-se assim o espaço de uma reformulação afetiva: ela sabe que o marido é homossexual, mas o que ainda não tinha percebido é que o jovem Youssef pode ser a melhor companhia para esse homem que ficará sozinho no mundo quando ela já não estiver ali.

Touzani observa esta revelação no interior do casamento com a mesma paciência de quem borda a túnica. A câmara segue Halim pelas ruas da cidade de Salé, até aos banhos públicos onde ele liberta o desejo reprimido socialmente, e no plano doméstico capta os olhares, ora meigos ora magoados, que exprimem as almas retalhadas de cada uma das partes. Não é um drama expansivo; é um melodrama contido, em jeito de prova de amor. E muito do que resulta na sua construção emocional tem que ver com o próprio contraste dos cônjuges: ela (interpretada por Lubna Azabal, também protagonista de Adam) é uma mulher de pulso firme, sem papas na língua mas sensível; ele é um ser tímido, de semblante doce e alma nobre, com serenidade de artesão.

Ao demorar-se no retrato das personagens, na sensualidade dos seus silêncios, ou na simples ternura que se comunica através dos pequenos gestos, a realizadora cria uma estrutura sentimental que não depende de movimentos bruscos para produzir efeito. O tema da homossexualidade fica então como um segredo bem guardado nas costuras do tecido social marroquino, refrescando a imagem cinzenta dos cafés cheios de homens, que num par de vezes passa pela lente de Touzani. De resto, o que lhe interessa é a delicadeza do espaço íntimo, longe do burburinho másculo.

dnot@dn.pt

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