"Bento de Góis protagonizou uma das mais admiráveis epopeias terrestres de todos os tempos"
Vai ser o guia de duas novas expedições turísticas este ano inspiradas em viagens de portugueses, uma intitulada “Mistérios do Ladaque – Uma Descoberta Portuguesa” e a outra “O Caminho de Bento de Góis”. Góis, jesuíta, é relativamente famoso, pois foi uma carta sua enviada para Matteo Ricci em Pequim que confirmou que o Cataio de Marco Polo e a China eram o mesmo país. Mas quem foi Francisco de Azevedo e que viagem fez?
O padre Francisco de Azevedo passou quase toda a sua vida na Índia. Nascido em Lisboa em 1578, deixou Portugal ainda menino e ingressou na Companhia de Jesus em Goa aos dezanove anos. Após concluir os seus estudos, esteve destacado em Diu (1614) e em Rachol (1620), tendo sido depois nomeado visitador da missão de Monomotapa, império que chegou a ocupar todo o sul da África. Em 1627, Azevedo transitou para a missão do Grão Mogol, no Norte da Índia, e, em 1631, seria nomeado visitador da missão católica estabelecida anos antes em Tsaparang, capital do reino de Guge, no Tibete Central – cidade entretanto conquistada pelo rei do Ladaque –, com o intuito de obter as boas graças desse soberano tendo em vista uma possível reabertura da missão católica. Acompanhado do confrade João de Oliveira, Azevedo viajou de Tsaparang a Leh, capital do Ladaque, e só após conseguir do rei ladaqui a garantia de que poderiam continuar a pregar o cristianismo naquelas paragens, decidiu regressar às planícies da Índia. Porém, devido ao adiantado da época, optou por tentar uma nova rota via reino de Kulu, hoje Himachel Pradesh, fazendo aquilo que nenhum outro europeu fizera antes. Essa rota é hoje uma das estradas mais míticas do norte da Índia: o desafiante trecho de alta montanha Leh-Manali, utilizado anualmente por milhares de viajantes e amantes dos grandes espaços selvagens. Francisco de Azevedo faleceu em Goa a 12 de Agosto de 1660.
Góis também fez uma grande viagem. Quer contar?
Quanto a mim, o leigo jesuíta açoriano Bento de Góis, protagonizou uma das mais admiráveis epopeias terrestres de todos os tempos. Devido à sua energia, tato diplomático e domínio dos idiomas locais, foi o escolhido para a árdua missão de partir da Índia, no ano de 1603, em busca do tal mítico reino do Cataio, onde se acreditava existirem cristandades perdidas. Aconselhado pelos seus superiores sediados em Agra, Góis – com cabelo comprido e barba até ao peito – envergava o traje dos arménios: cabaia e turbante. A tiracolo trazia arco e estojo com flechas; à cintura, uma cimitarra. Procurava assim passar despercebido, disfarçado de mercador. A extraordinária jornada que o levou das planícies do Punjab à Grande Muralha da China, atravessando os píncaros do Hindu Kush e visitando diversos e obscuros reinos e emirados da Ásia Central, foi reconstituída pelo jesuíta Matteo Ricci, que na altura dirigia a missão católica em Pequim, com base em fragmentos de apontamentos redigidos por Góis e com o auxílio da memória do seu inseparável companheiro de viagem, o arménio Isaac. Depois de vários anos na estrada, já muito doente, Bento de Góis acabou por falecer em Suzhou (actual Jinquan), junto às portas da Grande Muralha e do deserto do Gobi. E com o homem desapareceu a obra: o diário que religiosamente conservava foi roubado e posteriormente destruído. Imagine-se o quão riquíssimo seria o seu conteúdo…
Falamos muito dos navegadores portugueses, mas os missionários portugueses também foram exploradores de terras desconhecidas para os europeus. No ano passado, sei que guiou um grupo de viajantes da Pinto Lopes até ao Tibete, repetindo a rota de António de Andrade e Manuel Marques. Hoje o conforto de quem viaja é bastante, mas como era há 400 anos?
Eram viagens de extrema dificuldade, devido às enormes distâncias, inesperadas doenças e aos impedimentos de carácter orográfico – despenhadeiros, cursos de água impetuosos, passos de montanha, neves eternas, etc…, mas também pela presença de pequenos reinos que exigiam salvo-condutos e pesados tributos. No fundo, os missionários estavam à mercê dos caprichos de régulos e rajás, por mais pequenos que fossem. Como se não bastasse, deviam ainda ocultar a sua verdadeira origem, daí viajarem quase sempre disfarçados de mercadores muçulmanos.
Como se inspira para programar estas viagens inspiradas na História?
Estas viagens têm sempre como suporte principal uma vasta experiência pessoal no terreno de várias décadas. É argamassa bem solidificada. Não me atreveria a “guiar” pessoas por locais que não conheço suficientemente bem... É claro que complemento o “ter estado e sentido” com muita leitura e investigação histórica, traduzida nas várias obras, literárias ou de audiovisual, que já produzi.
Quem são os participantes? Pessoas aventureiras ou pessoas apaixonadas pela História, sobretudo a que envolve portugueses em regiões exóticas, neste caso da Ásia?
Há de tudo um pouco. E com agrado tenho reparado que a questão etária não constitui problema. Obviamente, são viagens fora da caixa que exigem algum espírito de aventura. Afinal, se não é para nos surpreendermos com o desconhecido, ou o menos conhecido, de que nos serve a viagem? Em boa verdade, hoje em dia, até a mais ousada das expedições garante níveis de conforto bastante aceitáveis. Quanto ao suscitar junto dos meus concidadãos o interesse pela nossa História e os feitos dos seus fascinantes protagonistas que pelo mundo se destacaram, sim, é esse o principal objetivo dos projetos que apresento.
Em que datas vão acontecer as viagens?
A “Mistérios do Ladaque – Uma Descoberta Portuguesa” deste ano já está fechada; para a edição de 2026 optamos pelo mês de Agosto – de 1 a 22 –, altura em que há maior disponibilidade da parte do cliente. Quanto à viagem “O Caminho de Bento de Góis” acontecerá entre 28 de Setembro e 20 de Outubro deste ano. Devo lembrar ainda que um pouco antes – de 7 a 25 de Setembro – terá lugar a segunda edição da “Expedição aos Himalaias – China, Tibete, Nepal”, viagem realizada o ano passado com grande sucesso.
Como foi o seu primeiro contato com este mundo dos exploradores portugueses de há quatro ou cinco séculos?
Esse contacto resultou de uma combinação/fusão muito natural entre a ânsia de viajar – manifestada bastante cedo na minha vida – e uma formação académica na área da História e das Artes, sendo a época dos Descobrimentos a mais sumarenta fonte de estudo. Sem dúvida.