Thriller e drama numa simbiose comovente.
Thriller e drama numa simbiose comovente.

Benedict Cumberbatch e o monstro cá dentro

Do melhor que vamos ver este ano no streaming, Eric traz Benedict Cumberbatch na pele de um pai com uma mente brilhante e disfuncional, carregado de culpa. O género de personagem que o ator veste às mil maravilhas, no caso, envolvida pela Nova Iorque dos Anos 1980. Chega à Netflix esta quinta-feira.
Publicado a
Atualizado a

Sentados numa carruagem de metro, no caminho para casa, um miúdo tenta mostrar ao pai o desenho que fez. O pai é um marionetista famoso, criador de um programa infantil tipo Rua Sésamo, e naquele instante está distraído a observar a fauna da carruagem, parecendo ignorar em absoluto o boneco que o filho desenhou (e que desconfiamos ter potencial criativo para entrar no seu programa).

Mais tarde, ao jantar, já tocado pelo álcool, o pai pergunta ao rapaz sobre a “coisa grande e azul” que ele imaginou e passou à página, pedindo-lhe para descrever os detalhes físicos do tal boneco. Aí percebemos: este pai irritante, pouco empático, sobre o qual fomos formulando uma opinião desde os primeiros minutos da minissérie Eric, não está tão fechado sobre si mesmo, como se sugere - afinal, ele ouviu o filho. Talvez o mal-estar que se vislumbra na sua postura, em contraste com a natureza da profissão de marionetista, seja apenas um escudo... E só um ator como Benedict Cumberbatch para tratar estas subtilezas de personalidade ao nível do artesão que modula a voz como quem afina a música do corpo. O ator perfeito para assumir a pele de alguém cuja mente não para de trabalhar. 

Em estreia esta quinta-feira na Netflix, Eric não será bem a série que as imagens, desde logo o cartaz, dão a entender. E esse é o primeiro elogio que deve ser feito à showrunner Abi Morgan, britânica que aqui se associa à realizadora conterrânea Lucy Forbes (do excelente In My Skin), nos seis episódios, para criar uma ficção robusta e cheia de linhas secundárias substanciais. A saber, não se trata de uma história fofinha e familiar, em que o boneco funciona como um amigo imaginário que ajuda a resolver problemas; nem se dá sequer o caso de a personagem de Cumberbatch sugar toda a energia do drama, como aconteceria se a escrita não tivesse camadas e força suficientes para apontar em diferentes direções e enriquecer o quadro.  

A cidade como tapeçaria

Estamos na Nova Iorque dos Anos 1980, com a taxa de criminalidade a insinuar-se nos olhares de rua, na desolação dos sem-abrigo, e há uma criança que desaparece precisamente na manhã em que o pai se distraiu e a deixou ir sozinha para a escola. A mesma criança, Edgar, que tentara chamar a atenção do pai, Vincent (Cumberbatch), com o desenho no dia anterior, e que saiu do prédio cabisbaixo depois de ter presenciado a enésima discussão entre os progenitores.
O que se segue, naturalmente, é uma investigação liderada por um detetive da polícia de Nova Iorque, ao mesmo tempo que Vincent, carregando o peso insuportável da culpa, se deixa tomar pela crença (vista como insana) de que o filho voltará para casa se ele transformar o monstro desenhado numa figura de tamanho real e o levar à televisão, através do seu programa, Good Day Sunshine.

Eis então as duas linhas narrativas paralelas que se estabelecem: por um lado, o detetive negro e homossexual que navega, com cuidado, o ambiente racista do seu departamento, enquanto prova ter agilidade para explorar os segredos sujos da cidade; por outro lado, o marionetista, essa espécie de “génio Jim Henson”, com uma saúde mental frágil, que inicia a sua própria missão, vendo-se, a partir daí, acompanhado pelo monstro... em tamanho real. É essa figura que dá nome à série, pois claro.

Sem nunca tornar a presença do boneco Eric adocicada ou suscetível de ser lida à luz de uma simples fantasia infantil, o argumento de Abi Morgan - e, já agora, a realização plena de texturas de Lucy Forbes - enveredam por um formato de thriller  urbano que em tudo privilegia uma malha coletiva, ou a realidade americana de um tempo captado no espírito e na forma.

“Havia algo de muito particular nos Anos 80”, disse a criadora ao jornal Los Angeles Times, remetendo para a sua experiência de Nova Iorque em tal época. “Era um caldeirão e um ponto de mudança, uma altura de areias movediças, cheia de medos e esperança, com momentos de grande liberdade e outros em que se derrubava essa liberdade. Pareceu-me um tecido e uma tapeçaria verdadeiramente ricos para definir Eric.”

Com efeito, essa tapeçaria permite à série ganhar espessura dramática e não se resumir à ideia de um conto impoluto sobre a paternidade. Quer dizer, ao centrar a falha psicológica de Vincent/Cumberbatch, Morgan não deixa de desenvolver uma rede complexa de personagens, que tanto pode passar pelo velho zelador de um prédio, como pelos políticos locais. É uma série que cose magnificamente família, casamento, foro psíquico, corrupção e preconceito, sem deixar as costuras à vista: tudo se harmoniza pela escrita dura e emocional de Morgan, que extrai da matéria dos atores (entre eles, um português, José Pimentão) a riqueza e angústia das relações.

Em especial, a personagem a cargo de Benedict Cumberbatch configura mesmo um estudo sobre a capacidade que temos, ou não, de mudar - não é por acaso que se ouve, em dois momentos diferentes, uma citação de Tolstoi: “Todos querem mudar o mundo, mas ninguém se muda a si mesmo.” A haver mudança, terá de ser visceral, e o ator britânico é um especialista, não só na linguagem nervosa das mentes agitadas (O Jogo da Imitação, Sherlock, Patrick Melrose, A Vida Extraordinária de Louis Wain...), como na mais pura metamorfose interior. Qualquer coisa que escapa ao olho nu, e que, ao manifestar-se, causa deslumbre.

Cada episódio de Eric procura um ponto de equilíbrio na arte de narrar, para que o mínimo movimento desta teia urbana mexa com a estrutura toda, e se perceba que o comportamento humano individual não está desligado da vida em sociedade. Assim como não estamos desligados dos nossos demónios felpudos... O que dizer mais, sem dizer demasiado? Uma das melhores séries de 2024, com um monstro a pedir para ficar debaixo da nossa cama.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt