Em novembro de 1910, um biplano Curtiss descolou de uma plataforma de madeira construída na proa do cruzador americano USS Birmingham. A nave era comandada pelo piloto Eugene Ely. O avião, invenção do início do século XX, fazia o seu primeiro voo a partir de um navio. “Só a partir de 1910, depois de Henri Fabre ter desenvolvido flutuadores que permitiam a uma aeronave amarar e descolar da água em segurança, se começou a projetar aviões com capacidade para operar em ambiente marítimo”, lemos no livro Aviação Naval (1912-1924) - Das Origens à Perda de Sacadura Cabral, assinado por Hugo Baptista Cabral, comandante da Esquadrilha de Helicópteros da Marinha entre 2021 e 2024. Acrescenta o autor: “em 1911 a US Navy cria a sua aviação naval; em 1912 a França e a Grã-Bretanha; em 1913, a Alemanha, o Império Austro-Húngaro, a Itália e a Rússia; em 1914, o Japão e o Império Otomano”. .Na obra que decorre de uma tese de mestrado, o investigador em História Marítima, detém-se no percurso da Aviação Naval no nosso país e determina os contornos desta expressão que designa “genericamente a componente de aviação que a Marinha Portuguesa operou entre 1917 e 1952”..Em outubro de 1909, a história da aeronáutica portuguesa assinalava a demonstração de um aeroplano no hipódromo de Belém. A 11 de dezembro de 1909 era fundado o Aeroclube de Portugal. Hugo Cabral, que em 1998 iniciou a sua especialização em piloto de helicópteros na Força Aérea Portuguesa, olhou para além destes dois marcos. “Em termos de historiografia, a aviação portuguesa é feita como um todo. Não há um estudo mais aprofundado sobre a componente da Aviação Naval. Também constatei, à medida que avançava na investigação, que a história da criação da aviação naval apresentava lacunas e incorreções relativamente à sua génese e processo de criação”. .As 200 páginas do presente título nasceram de forma inusitada. É o autor quem nos conta a génese deste trabalho: “há perto de 20 anos retomei um passatempo de adolescência, o modelismo de aeronaves. Meti na cabeça que havia de construir todas as aeronaves da Marinha [risos]. Comecei a recolher material, juntei muitas fotografias inéditas, investiguei e pensei: ‘era interessante fazer um livro sobre os aviões da Marinha Portuguesa’. Acabei por reajustar o tema para as aeronaves da aviação naval. Sobre o tema, visitei arquivos e não encontrei informação sistematizada. Acabei por ter de juntar todas as pontas. Face a todo este material lancei-me num mestrado em História Marítima e apresentei uma tese sobre a Aviação Naval [com o mesmo título do livro]. Para estreitar o âmbito da tese limitei-me ao período que vai de 1912 ao desaparecimento, em 1924, de Sacadura Cabral. No fundo, foi um trabalho de paixão pelo tema e também de admiração pelo piloto português, um homem determinado e à frente do seu tempo. O que levou este homem que fez toda a sua carreira ligada à geografia e a geodésica, a interessar-se pela aviação? De facto, orienta a sua atividade no sentido de criar uma componente de aviação dentro da Marinha”. .A aviação naval no período da Grande Guerra.Ideia deste livro nasceu há perto de 20 anos da paixão de Hugo Baptistas Cabral por modelismo de aeronaves..Em Portugal, o primeiro vestígio conhecido de interesse em aeronáutica dentro da Marinha Portuguesa surge em 1882, através de um artigo sobre dirigíveis editado nos Anais do Clube Militar Naval, da autoria do Segundo-tenente José Nunes da Mata. “Neste artigo, o autor aborda o potencial de emprego dos dirigíveis nas operações navais e no transporte de passageiros”, refere Hugo Cabral..“Na prática, a capacidade das primeiras aeronaves era muito limitada. Contudo, percebeu-se a vantagem de aceder à terceira dimensão, ou seja, poder ver mais longe a partir de uma posição aérea. Diria que acaba por ser um interesse natural de qualquer pensador militar, o de ter mobilidade no espaço. Naturalmente, Portugal não foi alheio a esta questão. Também aqui e à semelhança de outros países, após a Grande Guerra [1914-1918] nasce o projeto da criação de uma componente aérea forte”, sublinha o investigador, para continuar: “antes, o início do século XX é marcado, na guerra naval, por teorias como a do almirante Alfred Mahan, da marinha dos Estados Unidos, inspirado na Batalha de Trafalgar, momento decisivo para os britânicos dominarem o mar durante 200 anos. Começam, então, a construir-se navios para uma grande batalha futura e decisiva. Portugal, apesar das suas limitações económicas, também pensa nos dreadnought [navio de guerra couraçado]. Não estávamos propriamente fechados a outros planos, nomeadamente na dimensão aérea”. .“No mar, no decorrer da Grande Guerra a batalha naval decisiva não se deu. Grande parte do conflito no mar passa-se em torno dos submersíveis alemães, com resultados surpreendentes. Aquelas eram armas letais, face às quais os meios de combate eram exíguos, exceto as aeronaves, com o seu campo de visão enorme. Estas, acabam por ter uma grande relevância na guerra marítima”, adianta Hugo Baptista Cabral. .Nasce a Escola de Aeronáutica Militar.Sacadura Cabral (à direita) com a tripulação do hidroavião F3.Foto: Museu da Marinha.“Em Portugal, a República acaba por trazer a aceitação de novas ideias. Um pouco antes, na organização militar, a partir de 1909, surge a ideia de usar aeronaves para reconhecimento do campo de batalha. Isto no Exército. Nas chefias da Marinha a visão não era esta. Entretanto, alguns oficiais ligados ao Aeroclube de Portugal [fundado em 1909] pensam em construir uma escola de aviação militar para formar pilotos para o Exército e para a Marinha. Em abono da verdade, a Primeira República não permitia grandes planos estratégicos, com a imparável sucessão de governos. Finalmente, em 1912, é criada a Aeronáutica Militar em Portugal”, refere Hugo Baptista Cabral. Entretanto, convencionou-se a data de 14 de maio de 1914, associada à publicação da Lei n.º 162, como aquela que instituiu a Escola de Aeronáutica Militar. .Nos primórdios, um conjunto de 11 oficiais revelaram vontade de ingressar na aventura que era a Escola de Aeronáutica Militar. Um deles foi Sacadura Cabral, então com 34 anos. No contexto de formação na Escola de Aeronáutica Militar, Sacadura Cabral vai para França e ingressa na Escola Militar de Chartres. Em 1916, Portugal entra na Guerra o que obriga a pensar na defesa militar do país. “No ano de 1916 dá-se o ataque de um submarino U-83 alemão ao Funchal. Percebemos que os nossos portos podiam ser atacados a qualquer momento. Naquele contexto, um oficial francês, Maurice Larrouy, apresenta uma proposta para que os portugueses criem um sistema de defesa costeiro baseado em aviões e dirigíveis. Esta proposta chega às mãos de Sacadura Cabral. Este, aproveita a oportunidade para apoiar a compra de aeronaves junto da estrutura superior da Marinha. Ou seja, a aquisição de uma pequena componente de aviação, no caso vertente dois hidroaviões, mas a título experimental. Cria-se uma base francesa em Aveiro e, em 1917, chega material, nomeadamente os hidroaviões. Estes, fazem algumas patrulhas ao largo de Lisboa, mas ficamos muito por isto. O projeto esbarra num problema que ainda hoje temos, a falta de pessoal qualificado”. .Refira-se que ainda no decorrer do primeiro conflito mundial, a Marinha Portuguesa cria o seu braço aéreo, a que chama Serviço de Aviação da Armada e que, no ano seguinte, altera o nome para Serviço da Aeronáutica Naval. Em 1918, instalou-se na doca do Bom Sucesso, junto à Torre de Belém, o primeiro Centro de Aviação Naval. O Capitão-Tenente Sacadura Cabral foi nomeado, pelo ministro da Marinha, diretor dos Serviços de Aeronáutica Naval..Uma nova doutrina para a aviação naval.Aviação Naval 1912-1924Hugo Baptista CabralBy the Book 200 páginas.O fim da Grande Guerra traduziu-se numa mudança de conceitos e doutrinas no que toca à aviação naval. Uma mudança que, de acordo com Hugo Cabral, “não se refletiu apenas na Marinha, mas em toda a sociedade e à escala continental. Havia centenas de milhares de militares, milhares de aeronaves que teriam de ter um caminho após a Grande Guerra. Havia toda uma geração de jovens altamente qualificados. Nasce a ideia de se criarem linhas aéreas para transporte de correio, mais tarde de pessoas. Ou seja, desenvolver uma aviação comercial. É claro que também havia um interesse militar nesta questão. Era uma forma de os Estados manterem pilotos qualificados. Sacadura Cabral quando chega de França quer explorar a nossa posição estratégica para desenvolver a aviação comercial. Ou seja, para se fazer a travessia transatlântica, o primeiro ponto de escala eram os Açores. A seguir, o próximo ponto de escala era a Península Ibérica. Sacadura percebeu que se tivéssemos um aeroporto nos Açores, outro em Portugal e, eventualmente, outro em Cabo Verde, dominaríamos as rotas do Atlântico Norte e do Atlântico Sul. Sacadura Cabral começa a trabalhar nesta ideia, nomeadamente junto dos ingleses e dos americanos. E lança a ideia para a travessia do Atlântico Sul que concretiza em 1922”. .“Quando termina a Grande Guerra nasce também o conceito de policiamento aéreo, ou seja, exercer a presença do Estado no ar. Os ingleses e os franceses deparam-se com revoltas nas suas colónias. Neste contexto, o bombardeamento aéreo gerava o terror. Ou seja, há um novo emprego da aviação, o de enviar um esquadrão de biplanos para lançar bombas. Sacadura Cabral também reflete nesta dimensão da aviação, ao planear com a criação de pontos de hidroaviões em terra, nas colónias. Também engendrou a ideia de um navio que funcionasse como uma base flutuante de hidroaviões para chegar aos diferentes territórios”. .Sobre o ano de 1924 no contexto da Aviação Naval, comenta Hugo Cabral: “uma coisa é ser marinheiro ou marchar em terra. A Marinha e o Exército percebiam muito disso. Mas, da realidade de estar no ar, só os aviadores percebiam. E, rapidamente, entram em conflito com as suas chefias. Surge um espírito corporativista nos aviadores. E isto acaba por se corporizar no Exército em 1924, quando a aeronáutica militar começa a ser uma arma, com um comando próprio, entregue a aviadores. Antes do seu desaparecimento, Sacadura Cabral vai ser exímio a orquestrar este caminho. Em particular após a Travessia, o piloto percebe o poder do jornalismo como instrumento de pressão”.