Gonçalo Villaverde/Global Imagens
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"Avançou-se muito nos direitos das mulheres, mas não se avançou em relação à violência doméstica"

Inicia-se amanhã, em França, o Fórum Igualdade, pela Igualdade de Género na Europa, assinalando as comemorações dos direitos das mulheres. Será homenageada uma das "Três "Marias" das "Novas Cartas Portuguesas", nos 50 anos da publicação.
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O Fórum Igualdade, pela Igualdade de Género na Europa decorre nos dias 8, 9 e 10 em Angers, França, inserindo-se na Temporada França-Portugal 2022. Iniciativa acordada entre os governantes de ambos os países para estreitar as relações bilaterais. Envolverá mais de 200 projetos, 480 eventos, em 84 cidades em França e 55 portuguesas.

O Fórum é um desses eventos e terá lugar também em Lisboa, em outubro. Começa no Dia Internacional da Mulher, com destaque para as "Novas Cartas Portuguesas", de Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta. Obra que partiu das cartas da freira Mariana Alcoforado (obrigada a viver num convento) ao namorado. Para a organização, é uma forma de "celebrar o movimento de solidariedade entre feministas portuguesas e francesas", que se seguiu à censura do livro e ao processo em tribunal. Só não resultou na sentença das "Três Marias" porque, entretanto, se deu o 25 de Abril. Maria Teresa Horta, conta como surgiram as cartas, publicadas tinha 33 anos.

Como é que surgiram as "Novas Cartas Portuguesas?
Foi em reação ao meu livro "Minha senhora de mim" [1971], publicado pela Snu [Abecassis], na D. Quixote. A Snu foi chamada ao Moreira Batista [subsecretário de Estado da Presidência do Conselho] e ameaçou que se tornasse a publicar a Maria Teresa Horta, nem que fosse a história da Carochinha, fecharia a editora.

Pelo que conta não foram só ameaças verbais.
Não, fui espancada. Quando saiu a "Minha senhora de mim", o Luís [de Barros, o marido] estava no DN e ligou-me a perguntar se queria beber um copo, fazia isso muitas vezes isso. O que é engraçado é que sou abstémia, bebia um chá. Morávamos no bairro do Arco do Cego, subi a rua para apanhar um táxi e, quando chego à esquina, vejo um carro vir na minha direção, percebi que havia problemas. Deitam-me ao chão, dão-me pancada e dizem: "É para aprenderes a não seres como és". Felizmente, um senhor que morava na rua atrás de nós, pensou que estivesse a ser roubado e gritou "chamem a polícia", Eles meteram-se no carro e fugiram. Levaram-me ao hospital e pedi para avisarem o meu marido, naquela altura não havia telemóveis. Quando cheguei, já lá estava o Luís.

Alguma vez teve a confirmação que terá sido devido ao livro de poesia?
Nunca, mas não há coincidências. Diziam que era um livro pornográfico. Minha senhora de mim é dos meus melhores livros e mais bonito. Escrevi-o sentada no chão e a tomar conta do meu filho, que ouvia o disco dos Três porquinhos. Isto só acontece a uma mulher, escrever livros enquanto toma conta do filho.

Como é que se junta à Maria Velho da Costa e à Maria Isabel Barreno?
Eu, a Maria Velho da Costa e a Maria Isabel Barreno almoçávamos todas as semanas, íamos ao 13 que era o restaurante dos jornalistas, tínhamos mesa guardada. A Maria Velho, a Fátima, foi ter comigo e viu a minha figura. Contei-lhe o que se passara e ela exclamou: "Se um livro de uma mulher faz isso tudo, como é que seria se fossem três a escrever". Respondo: "É uma bela ideia, porque é que não escrevemos as três um livro?" Foi exatamente assim que surgiu. Chegámos ao restaurante e a Isabel não aceitou a ideia, disse: "Porque é que estão sempre nisso, nunca estão quietas, são insuportáveis".

Desistiram?
Não pensámos mais nisso. Na semana seguinte, chegámos ao restaurante, a Isabel olha para nós e disse: "Está aqui a primeira carta". Quer dizer, tivemos a ideia, desmoralizou-nos completamente e, agora, tinha uma carta? Ficou como a primeira carta, é a única coisa que se sabe da autoria das cartas, o resto ninguém sabe.

Começaram a escrever em 1971 e publicaram no ano seguinte.
O livro aparece e é proibido no mesmo dia, a polícia andava pelas livrarias a arrebatar o livro. Deixou de estar nas livrarias, estando, vendia-se clandestinamente. Não estava à vista, mas vendia-se.

Como é que o o Estado Novo justificou a proibição?
O livro denunciava o sistema político, a guerra colónia, a vida das mulheres, denunciava tudo. Na altura já éramos conhecidas por falarmos dos problemas das mulheres e levaram-nos a tribunal.

Teria acontecido o mesmo se fossem homens?
Se fosse com um homem era diferente, também não havia muitos livros escritos por três pessoas. Acredito que, para eles, o livro tenha sido uma ofensa, acho que o proibiriam de qualquer maneira. Poderia ter acontecido a um homem, mas a verdade é que não aconteceu. Proibiram o livro, levaram-no a tribunal, nós e a Natália Correia, que foi quem o publicou [editora Estúdios Cor]. Era uma mulher de uma grande coragem e extremamente solidária.

Foi a única pessoa que contactaram para a sua publicação?
Não, escrevemos as cartas e cada uma passou um exemplar à mão, não havia computadores. Entregámos uma cópia ao Leão de Castro para a Europa América, à Natália para os Estúdios Cor, e ao Pedro Tamén para a Moraes. Só a Natália Correia disse logo que o publicava.

Continua a escrever à mão?
Continuo, a poesia não se pode escrever em computador, tantos poetas que conheci, todos escreviam à mão, Só estes novinhos.

Como é que foi no tribunal?
Primeiro, entrevistaram as três individualmente, o que eles queriam é que elas dissessem que tinha sido eu a escrever, já tinha livros publicados, elas não eram conhecidas. Todas dissemos que tínhamos sido as três, não acreditavam. Depois, juntaram-nos numa sala onde estavam outras mulheres. Há uma que se levanta e pergunta porque é que estamos ali, respondemos que era porque tínhamos escrito um livro. Respondeu: "Então enganaram-se, porque esta sala não é para as meninas, esta sala é para as prostitutas." Veja bem o que quer dizer, são as prostitutas que nos tratam com deferência e nos dizem que aquela sala não é para nós, uma coisa horrorosa. Claro que ficámos. Mandaram-nos para ali para nos humilhar, como se isso fizesse importância para nós. A curiosidade era tão grande que os próprios polícias iam à porta ver-nos, era uma coisa inusitada, nunca tinha acontecido.

Como é que o livro chega a França?
Um amigo da Isabel Barreno diz-lhe que vai a Paris e que podia levar até três livros, foi muito corajosos, avisámo-lo disso, até porque era obrigatório abrir as malas. Contou depois que escondeu os livros na casa de banho até fazerem a inspeção da mala. Decidimos mandar o livro à Simone de Beauvoir, à Margarite Duras e à Christiane Rochefort. Dissemos que fosse primeiro à Simone porque tinha um movimento latino-americano e eram quase todas brasileiras. E o livro singrou. Uma coisa que muito me orgulha muito é o facto de ter havido nessa altura um encontro internacional feminista e as Novas Cartas Portuguesas foram consideradas o símbolo do encontro. Encarregaram-se de fazer chegar o livro a todo o mundo. Nós fizemos chegar a França, mas elas conseguiram que chegasse a muitos outros países.

Aceita o rótulo da primeira feminista portuguesa?
Acho que não sou a primeira feminista, houve muitas poetisas que eram feministas. Elas próprias é que não conheciam o termo.

Se escrevesse hoje alguma dessas cartas o que iria denunciar?
Tanta coisa, desde logo, a violência contra as mulheres, basta dizer que, quando apareceu a covid e fecharam as pessoas em casa, disse logo: "coitadinhas das mulheres." Quando se abriram as portas, muitas foram à polícia denunciar que tinham apanhado tareias. Mas avançou-se muito nos direitos das mulheres, não tem comparação. Lembro-me que, depois do 25 de Abril, o Salgado Zenha [então ministro da Justiça] consultou-me para fazer alterações ao Direito de Família, que era um atentado às mulheres. Tinham que pedir autorização ao marido para sair do país, não tinham qualquer direito sobre os filhos, não tinham direitos.

O que é que falta?
Avançou-se muito nos direitos das mulheres, mas não se avançou em relação à violência doméstica. Também é uma questão de mentalidades, que não mudaram assim tanto. Hoje em dia os namorados batem nas namoradas, antigamente batiam depois de casados.

Está sempre a referir o seu marido, o jornalista Luís Barros, que morreu no final de 2019, como é que têm sido estes tempos?
Se não fosse a poesia, não estava cá.

Ajuda a ultrapassar a dor.
Ajuda a equilibrar. Escrevi o Paixão [publicado em 2021], que é um livro sobre a minha relação com o Luís, foi sempre uma paixão, não percebo os que dizem que acaba a paixão e fica a amizade, não quero isso, tenho os meus amigos. A poesia não serve para iludir, para tapar, muito pelo contrário. E, se um poeta sente que se está a desequilibrar, a única coisa que o pode ajudar a equilibrar é a sua poesia. É como se dissesse: estou a retomar a vida, foi o que senti, embora nunca tenha deixado de escrever. Ainda por cima, o Luís morreu em Novembro e, passado pouco tempo, veio a covid, e eu fechada em casa. Claro que foi difícil, quando estava para o publicar, três vezes deixei cair as páginas e tive de voltar a organizar. Até que um dia decidi não voltar a pegar no livro. Falei com a minha nora, que é como se fosse minha filha, e pedi para o passar ao computador e o enviar à editora.

O ano passado recebeu o Prémio Literário Casino da Póvoa 2021, com o livro Estranhezas, conseguiu apreciar esse prémio?
Fez-me bem. Houve uma coisa muito bonita, muitas mulheres tinham o livro e uma concorrente ao prémio telefonou-me a dizer que eu que merecia o prémio.

ceuneves@dn.pt

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