Lily Gladstone, a serenidade vencedora.
Lily Gladstone, a serenidade vencedora.

Assassinos da Lua das Flores - A história viva segundo Scorsese

Não se pedia mais do que Scorsese a ser Scorsese: Assassinos da Lua das Flores responde a esse apelo enquanto põe os olhos na culpa americana, com robustez e maturidade clássica.
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Face à presença assídua de produções americanas nas nossas salas, será que ainda usamos o termo “Hollywood” considerando a complexidade do seu H maiúsculo? A palavra vulgarizou-se, mirrou, perdeu o seu toque de glória cruel, para se transformar numa abstração mais ou menos elástica, que serve sobretudo para enquadrar os demónios ou discursos salvíficos da indústria cinematográfica. Vem este pensamento solto a propósito do novo filme de Martin Scorsese, que na sua grandeza e coerência autoral, parece trazer para cima da mesa ferramentas que permitem refletir sobre a Hollywood de hoje, sem ceder à ansiedade da cura de todos os males com um só filme, e, acima de tudo, sem deixar de usar o seu próprio idioma (de cinema), ainda que integrando outro idioma (no caso, literalmente, o dos índios Osage). 
Assassinos da Lua das Flores, que tem agora honras de sala escura antes da estreia na plataforma Apple TV+, vem com uma aura de filme “corretivo” das práticas hollywoodescas, mas há uma certa simplificação no tom mediático. Já lá vamos. Scorsese, ao adaptar o livro homónimo do jornalista David Grann (editado entre nós pela Quetzal), sobre os assassinatos ocorridos no seio da Nação Osage, no Oklahoma, em plena década de 1920, deu cores e rostos a um capítulo que concentra algo da violência sobre a qual se fundou a nação americana. Uma violência que a filmografia do realizador sempre perseguiu como obsessão artística. Vejamos, o que é que sintetiza a primeira frase em off de Ray Liotta no filme Tudo Bons Rapazes - “Desde que me lembro, sempre quis ser um gangster” - senão uma violência de berço, inscrita no tecido cultural e levada ao extremo no corpo dos atores?  

Em Assassinos da Lua das Flores essa violência anuncia-se com a chegada de Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), um tipo meio ingénuo, meio oportunista que está a regressar aos Estados Unidos, depois da Primeira Guerra Mundial, na esperança de conseguir uma “orientação” do seu tio plutocrata, William Hale (Robert De Niro). Não sabemos bem quais seriam as suas expectativas naquele Oklahoma onde os Osage são os verdadeiros detentores da riqueza (fruto da descoberta de uma jazida de petróleo), mas o que interessa é que o tio tem o esquema pronto antes de acontecer: Ernest dará uma boleia a Mollie (Lily Gladstone), nativa que detém os direitos sobre os depósitos petrolíferos nas suas terras, casará com ela e, assim, o pobre diabo terá acesso à propriedade. Isto ao mesmo tempo que a família de Mollie e outros Osage começam estranhamente a revelar uma curta esperança média de vida, ora por doença, ora por suicídio. 
Com o ressentimento escondido nas costuras dos fatos impecáveis e numa aculturação artificial, a personagem de De Niro é um modelo de maleficência traquejada. Alguém que exibe uma atitude protetora do povo Osage apenas para poder usar métodos de aniquilação mais sofisticados, como seja uma falsa insulina injetada no corpo de Mollie, primeiro por médicos e depois pelo próprio marido... Este, por sua vez, torna-se a mais envolvente contradição dramática de Assassinos da Lua das Flores: somos levados a acreditar nos seus genuínos sentimentos por Mollie, enquanto testemunhamos a sua subjugação ao gangsterismo e uma incapacidade de interpretar rapidamente a realidade. DiCaprio dá-lhe essa lentidão, ambiguidade e vertigem até ao último momento, perante a nobreza infinita de Mollie/Lily Gladstone. 
Sem se comprometer com um género em particular - o western, o drama histórico ou o true crime -, apesar de esta ser também uma história do nascimento do FBI, Scorsese percorre-os todos na medida do seu próprio ecletismo, enquanto cineasta de múltiplas influências, capaz de remexer as entranhas da América com um abrangente toque clássico. A robustez de Assassinos da Lua das Flores deve-se muito a esse classicismo que reafirma o seu lugar como “realizador de Hollywood”, moldado pela cinefilia e pelo conhecimento da própria história do cinema americano.  
O ponto é este: as visões sobre o filme dividem-se entre um suposto politicamente correto, em relação à narrativa dos índios, e o facto de o espectador conhecer este universo pela perspetiva dos criminosos. O que prova como Assassinos da Lua das Flores existe, sobretudo, na qualidade de um filme de Martin Scorsese, com um sentido de profundo respeito pelos Osage (envolvidos na rodagem), mas nunca abdicando do ponto de vista do homem branco - lá está, o ponto de vista da violência. E é aí que cai o argumento do politicamente correto. O realizador não sacrificou a linguagem visceral do homem americano por uma perspetiva “justa”. Digamos que o cinema não está na tentativa de compensar falhas antigas, mas na arte de observar a história viva. Em entrevista ao The Guardian, Scorsese sublinhou mesmo que não se trata de um filme “histórico”, porque “os efeitos da tragédia ainda se sentem na comunidade”. No fundo, Assassinos da Lua das Flores é Hollywood e a América a conviverem com as suas feridas. O filme de um cineasta maduro que faz o que bem entende, magnificamente, em 206 minutos. 

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