As palavras com luz por dentro de Agustina Bessa-Luís

Ousada e conservadora, serena, mas desconcertante, Agustina Bessa-Luís é uma das vozes mais importantes e invulgares da Literatura Portuguesa. Nasceu há 100 anos.
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"Ouçam a minha voz e sigam-na", ordena a voz off no princípio de A Corte do Norte, o filme em que João Botelho adaptou o romance homónimo de Agustina Bessa-Luís. E como numa história de encantamentos, o espectador/leitor enfeitiçado obedece, avançando pelos labirintos da "história de uma mulher extraordinária, Emília de Sousa, aliás Rosalina de Sousa, aliás a Baronesa da Madalena do Mar, aliás a "Boal de Cheiro", aliás "a cabrita", e, por fim, de novo, a grande Emília de Sousa, a maior atriz que o teatro português conheceu nos finais do séc. XIX. Prostituta aos 15 anos no bordel da D. Antónia, em Lisboa, bela como ninguém e possuidora de um "olhar genial", transformada em atriz de grande talento, apesar de ser analfabeta, pelo seu protetor, o velho e perverso Visconde de Almeida Garrett, que se admite ter escrito para ela A sobrinha do Marquês". Por fim, casada com um dos mais ricos herdeiros da Madeira, que por ela cegou de paixão. Rosalina de Sousa, há-de cruzar-se com a imperatriz Elizabeth da Áustria, a bela e insaciável Sissi, que então veraneava na ilha, num encontro que a marcará como ferro e brasa e contribuirá para o mistério do seu desaparecimento.

Assim falava aos seus leitores a voz escrita de Agustina Bessa-Luís: como se as suas palavras fossem iluminadas por dentro e conduzissem o leitor pelos meandros de almas que, repugnadas pela banalidade, avançam no arame, entre a atração pelo abismo e a esperança da redenção. Sem os meios termos que a escritora assumidamente detestava.

Na obra, como na vida de Agustina Bessa-Luís, cujo centenário de nascimento hoje se celebra, nada pode ser etiquetado com precisão do taxidermista de costumes, estéticas ou ideologias. Na biografia que consagrou à autora (O Poço e a Estrada, edição Contraponto, 2019), Isabel Rio Novo escreve: "Simplista Agustina nunca foi. Assumiu posições conservadoras e conotadas com a doutrina da Igreja Católica, religião que perfilhava, mas manifestou-se a favor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Não se coibiu de dizer publicamente que não gostava de algumas das adaptações que Manoel de Oliveira fez dos seus livros (...) não se inibia de declarar o gosto por coisas que a moral determinou serem fúteis, como vestidos, malas, sapatos, joias."

Ao longo da minha vida de jornalista, pude constatar várias vezes como a escritora gostava de desconcertar os circunstantes, experiências que obviamente classifico como privilégios que me foram dados. A primeira vez aconteceu no verão de 1994, quando, como redatora do JL, fui à sua casa na Rua do Gólgota, no Porto, para a entrevistar. Eu tinha 27 anos e, embora fosse (e ainda sou) uma leitora empolgada de Agustina desde o final da adolescência, sentia que me eram curtos os anos, as experiências e as leituras para tamanho empreendimento. Começámos por falar da encenação da sua peça As Fúrias por Carlos Avilez, então em cena no Teatro Dona Maria II e a conversa avançou para o romance acabado de publicar, O Concerto dos Flamengos, e ainda para as adaptações das suas obras ao cinema pelo seu amigo Manoel de Oliveira. Como se se fizesse tarde (a entrevista durou perto de três horas), a escritora chamou a sua empregada (na verdade, uma criada residente à antiga) e pediu-lhe que servisse o chá. E vieram a toalha imaculada de branco, o bule inglês, os scones caseiros, a manteiga e o doce. Por fim, quando me despedi, Agustina veio mostrar-me os gatos que moravam no jardim de sua casa. Gostava muito deles sobretudo pelo carácter de que davam mostras. Com inequívoco prazer, disse-me: "Gosta? São bonitos, não são? Mas são maus."

Mais de uma década depois, reencontrei-a, animada ainda pelo mesmo propósito de desconcertar. Aconteceu num encontro para professores de Português, promovido pela Gulbenkian, em que a sua conferência era o ponto alto do dia. Agustina entrou e, perante uma audiência composta maioritariamente feminina, começou por afirmar algo deste género: "As mulheres têm sido vítimas de discriminação ao longo de séculos. Mas a culpa também é delas." O silêncio que se seguiu demonstrava que a provocação tinha surtido efeito.

Mas quem era esta mulher tão difícil de definir? Nascida em Vila Meã, Amarante, a 15 de outubro de 1922, era filha do empresário Artur Teixeira Bessa (1882-1964), duma família rural de Entre Douro e Minho, e de sua mulher Laura Jurado Ferreira. Ao longo da sua infância e adolescência, a escritora viveu em vários lugares do Norte (Gaia, Porto, Póvoa de Varzim, Águas Santas, Vila do Conde e Godim), o que, à mistura com uma paixão persistente pela obra de Camilo Castelo Branco, a marcaria de forma decisiva.

Estreou-se como romancista em 1948 com a novela Mundo Fechado, seguindo-se com uma produtividade pouco usual no nosso panorama literário obras como A Sibila (1954); O Mosteiro (1980); Os Meninos de Ouro (1983); Adivinhas de Pedro e Inês (1983); A Monja de Lisboa (1985); A Corte do Norte (1987); Prazer e Glória (1988); Vale Abraão (1991); O Concerto dos Flamengos (1994); os três volumes de O Princípio da Incerteza (2001-2003) ou A Ronda da Noite (2006). Escreveu também várias peças de teatro e as biografias de Santo António (1979); Florbela Espanca (1979); Sebastião José de Carvalho e Melo, para além dos ensaios biográficos das artistas plásticas Vieira da Silva e Martha Teles, respetivamente intitulados Longos Dias Têm Cem Anos (1982) e Martha Telles: O Castelo Onde irás e não voltarás (ensaio e biografia).

Por conta da visibilidade que a sua obra lhe proporcionou, foi chamada a desempenhar algumas funções públicas: entre outras, foi membro do conselho diretivo da Comunitá Europea degli Scrittori (Roma, 1961-1962), entre 1986 e 1987 dirigiu o diário O Primeiro de Janeiro (Porto), assumiu a direção do Teatro Nacional de D. Maria II (entre 1990 e 1993) e foi membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social. Integrou ainda a Academie Européenne des Sciences, des Arts et des Lettres (Paris), bem como a Academia Brasileira de Letras a Academia das Ciências de Lisboa. Prémio Camões em 2004, já fora distinguida previamente com a Medalha de Mérito Cultural (1993), a Ordem de Sant"Iago da Espada (1980), a Medalha de Honra da Cidade do Porto (1988) e com o grau de Officier de l"Ordre des Arts et des Lettres, atribuído pelo governo francês (1989), entre muitos prémios pelo conjunto da obra ou para um título específico.

Vários dos seus romances foram adaptados ao Cinema por Manoel de Oliveira. Exemplos desta parceria nem sempre pacífica são Fanny Owen (Francisca, 1981), Vale Abraão (filme homónimo, 1993), As Terras do Risco (O Convento, 1995) ou A Mãe dum Rio (Inquietude, 1998). João Botelho adaptaria A Corte do Norte em 2009, repegando num velho projeto do também cineasta José Álvaro Morais, falecido em 2004.

Ao longo da sua obra são muitos os temas tratados pela escritora, mas há uma insistência particular em tudo o que se relaciona com o feminino, com o seu Douro e ainda com Camilo Castelo Branco (que revisitará sobretudo em Fanny Owen). Conservadora nos costumes e na ideologia (tomará, por exemplo, o partido da mulher de Sá Carneiro, quando esta se recusa a assinar o divórcio para que ele casasse com Snu Abecassis), as suas personagens femininas não hesitam em quebrar as convenções. É o que acontece em Vale Abraão, por exemplo, em que a autora escreve: "O que elas invejavam nos homens não eram os órgãos genitais, mas o que eles representam: uma criatura completamente prestável aos jogos do acaso e livre da submissão que constrange o perverso, o malvisto, o delirante do seu próprio mérito, a lançar para debaixo dum comboio ou a comer um punhado de arsénico."

Também o Brasil, que o seu pai demandara, como tantos, em busca de fortuna, aparece na sua bibliografia, através de Breviário do Brasil, só na aparência uma recolha de impressões de viagem. Ao longo desse périplo de uma comitiva portuguesa pelo país, patrocinado pelo Centro Nacional de Cultura, a autora vai assinalando as complexidades culturais e históricas do Brasil. Mas o Douro é, entre todas, a paisagem que, na sua obra, toma um relevo de protagonista. O que não a reduziu à condição de escritora regional. Como escreveu Álvaro Manuel Machado, um dos mais dedicados estudiosos de Agustina: "A sua obra romanesca é ao mesmo tempo a mais enraizada na cultura portuguesa genericamente falando, e a mais culturalmente universal de todas."

Sentada à sua mesa de trabalho na Rua do Gólgota, Agustina nunca se contentou com pouco. Na sua autobiografia (edição Guerra e Paz, 2014) afirma: "Eu só queria escrever, entrar no coração das pessoas e beber-lhes o sangue, avançando sempre, criando enredos e fazendo saltar as personagens das páginas. Há pouca gente que perceba que escrever é uma espécie de danação em que às vezes se têm encontros com Deus." Morreu a 3 de junho de 2019, depois de longos anos de doença. Sobreviveram-lhe a única filha, Mónica Baldaque (nascida do casamento com Alberto de Oliveira Luís, o rapaz que conheceu após ter publicado um anúncio no Primeiro de Janeiro em busca dum correspondente culto), os netos e um punhado de personagens literárias, entre as mais inesquecíveis alguma vez criadas em língua portuguesa.

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