De que falamos quando falamos de cinema da Lituânia? Através da distribuidora Zero em Comportamento, aí temos uma resposta possível através da estreia de Tóxico, primeira longa-metragem da argumentista e realizadora Saulė Bliuvaitė (nascida na cidade de Kaunas, em 1994). Estamos, além do mais, perante um título que adquiriu especial evidência em alguns circuitos internacionais graças ao Leopardo de Ouro que obteve no Festival de Locarno de 2024.Bliuvaitè conta-nos uma história da sua própria cidade, centrada na personagem de Marija, uma jovem de 13 anos que se inscreve numa agência de modelos. Alimenta a esperança de obter uma especialização que lhe garanta o fausto imaginado e, em boa verdade, imaginário de uma vida profissional que a levará a lugares faustosos dos EUA ou do Japão...O negrume dos espaços urbanos, marcados por aquilo que parece ser uma industrialização selvagem, cedo contraria qualquer ilusão redentora. Digamos que tudo acontece em cenários que fazem lembrar a frieza arquitetónica do clássico Deserto Vermelho (Michelangelo Antonioni, 1964), menos a abstração filosófica; ao mesmo tempo, as muitas formas de violência física e moral podem evocar outra referência italiana, Feios, Porcos e Maus (Ettore Scola, 1976), menos os efeitos de comédia negra.Nada a ver, entenda-se, com meras citações cinéfilas. Aquilo que confere a Tóxico a intensidade genuína e perturbante de um drama é a fisicalidade de todos os instantes. E não só porque Marija (interpretada por Vesta Matulytė, notável estreante), coxeando ligeiramente, está condenada a confrontar-se com o reverso da sua angustiada utopia. Este é um mundo em que as condições materiais - incluindo, claro, as múltiplas formas de exploração das candidatas a modelos - se exprimem através de inusitados sofrimentos corporais. Há mesmo uma cena em que a amiga de Marija, Kristina (Ieva Rupeikaitė), se sujeita à colocação, a sangue frio, de um piercing na língua.Enfim, convém esclarecer que o modo de filmar de Bliuvaitè está longe de procurar o efeito fácil de uma “parada de horrores” (cuja identificação não deixa de ser clara, nomeadamente na vida sexual de rapazes e raparigas). Tóxico pertence mesmo a uma tendência transversal a algum cinema contemporâneo, de origens geográficas e culturais muito diversas, que se demarca da circulação gratuita de imagens (favorecida pelo fluxo televisivo quotidiano), optando pelo retorno a formas austeras de realismo. Lembremos, por isso, o valor de duas fundamentais componentes técnicas: a fotografia à beira do hiper-realismo e a envolvência quase surreal dos ambientes sonoros..Natália Correia em forma de puzzle.O elegante adeus a Downton Abbey