Um é Pereira, outro é Teixeira, mas, sendo os dois Aristides, ainda há quem julgue que o Teixeira é filho do Pereira, ou que o Pereira é pai do Teixeira, o que não é o caso. Caso, aliás, que se adensa e complica por serem os dois de “cor crioula”, para usar a expressão da jornalista Maria João Gama, em conversa no “Há Conversa”, de 4/4/2014; por terem ambos origens nas ilhas de Cabo Verde; por um deles, o Pereira, ter sido funcionário dos serviços de telecomunicações e o outro, o Teixeira, funcionário da RTP; e, enfim, por um ter sido Presidente da República e o outro candidato a sê-lo. Além do apelido, também o nome próprio de Aristides (Teixeira) provoca certos equívocos e mal-entendidos, pois já houve quem o chamasse “Aristides da Ponte”, lembrando o cônsul homónimo, hoje panteonizado. A cor da pele, de seu lado, fez com que, quando começou a apresentar programas na TV, muitos julgassem que era filho de Alice Cruz e do locutor Rui Romano, de tez africana, e, como não bastasse, num passado não remoto, era habitual confundirem-no na rua com o futebolista Shéu Han, com o qual tem indiscutíveis parecenças. .Por tudo isto, seria tentador pensarmos que Aristides Teixeira não existe, que é um holograma, o fruto de uma clonagem entre um antigo chefe do Estado de Cabo Verde, um diplomata heróico da 2.ª Guerra, e, no aspecto extrínseco, um antigo central do Benfica, camisola 11. Simplesmente, Aristides está vivo e recomenda-se, e, aliás, não tem perdido ocasião de mostrá-lo. Para alguns, não passará de um vaidoso, mais um, sedento de protagonismo e de palco. Para outros, um cidadão exemplar, activíssimo, sempre empenhado num carrossel de causas, seja a dos direitos dos utentes de transportes públicos, da contestação às portagens na Ponte, da poesia de intervenção, do fim das touradas, de uma homenagem ao seu amigo Carlos Castro, de outra em prol de Florbela Queiroz, de um busto à memória antifascista do seu pai ou, em termos mais prosaicos, da reabertura das casas-de-banho públicas na estação ferroviária Roma-Areeiro. .Na escola, muito miúdo, chamavam-lhe “Pepe Rápido” e, para lhe percebermos a cinética, importa conhecer o seu pai, Eleutério Teixeira, filho natural de pais burgueses, nascido em Cabo Verde, em 1910, e vindo aos nove anos para a metrópole, onde estudou, abriu uma mercearia e uma firma de construção civil em Albarraque e desde cedo se envolveu na oposição ao salazarismo, começando pelas revoltas de 1927, que o fizeram acabar em Peniche, onde conheceu Júlio Fogaça, e, mais tarde, pela campanha de Humberto Delgado e pelo golpe de Beja. À conta deste, foi preso e torturado em Caxias e Aristides lembra-se de ir vê-lo à cadeia, na companhia da sua mãe. A memória dessas visitas dramáticas - e das marcas das sevícias no rosto do pai - ainda hoje o acompanha, explicando muito do seu percurso de vida. .No julgamento dos implicados no golpe, Eleutério acabou absolvido, mas, como é evidente, passou por dificuldades no regresso à liberdade: trabalhou na remodelação do Cinema Europa, foi cenógrafo, pediu emprego aos amigos, Soares respondeu-lhe que não tinha nada, nem no escritório da Rua do Ouro nem no Colégio Moderno, mas comprometeu-se a meter “uma cunha” por ele, que continuou militando contra o regime, em conjunto com o seu advogado e ídolo, Salgado Zenha, em iniciativas como o Congresso Republicano de Aveiro, entre outras. Rejubilou com o 25 de Abril, é óbvio, mas, em finais de Maio de 1974, já estava a vociferar no seu diário contra os “oportunistas” da revolução, gente que, sem nada ter feito nos tempos sombrios do fascismo, esbracejava agora pelas sinecuras do novo regime. Nas fotografias do 1.º de Maio de 1974 vemo-lo na manifestação retumbante, logo atrás de Cunhal e Soares. Ao lado dele, muito mexido, o jovenzinho Aristides, que encontramos igualmente, sempre a furar, sempre a aparecer, nos vários eventos públicos em que o pai participava: jantares, comícios por El Salvador, marchas da paz, funerais, velórios, romarias republicanas. .Eleutério, um homem que, nas palavras do filho, “cedo aprendeu a navegar nas águas tempestuosas da luta de classes”, pertenceu a um grupo social curioso, jamais estudado, o dos amargurados ou deserdados de Abril, gente geralmente boa, idealista, que depositou enormes esperanças no regime novo, mas a quem este acabou por desiludir, fosse porque tardava a implementar as reformas necessárias a um país mais justo e fraterno, onde todos seriam felizes, fosse porque não lhes dava os empregos, os lugares de destaque e a vida melhor a que julgavam ter direito pelo seu passado “antifascista”, sobretudo no confronto com outros, os que cedo abocanharam os tachos e as ribaltas, logo apodados de “vira-casacas”, “golpistas”, “videirinhos” ou pior. À medida que a revolução regredia, com a política e os cargos a passarem para o controlo dos partidos e das suas máquinas e cliques, e depois com o ascenso da AD e, pior ainda, de Cavaco Silva, a desilusão deslocou-se para o país como um todo, visto como uma “choldra”, quando não para o seu próprio povo, agora figurado como atrasado e ignaro (“É triste, mas é verdade. Somos o povo mais atrasado da Europa”, anotou Eleutério no seu diário). Com o tempo, conformaram-se, resignaram-se, envelheceram, ficando tão-só com a mágoa e o ressentimento, um mar de ilusões perdidas (Eleutério insurgia-se contra os “doutores”, que “travaram lutas contra a ditadura dentro das universidades e no conforto dos seus lares”). Erradicados dos partidos, quase sempre por vontade própria, passaram a fazer política por outros meios, menos operantes, é certo, mas muito mais amigáveis, entregando o que lhes restava de energia e esperança à causa da “cidadania”, uma nebulosa ou albergue espanhol onde tudo cabia, mas onde tinham, ao menos, o lenitivo de reencontrar cumplicidades antigas, dessas a toda a prova, forjadas e testadas nas trevas da “resistência”. .O diário de Eleutério Teixeira, publicado pelo seu filho Aristides (Um Herói Discreto, pref. de Urbano Tavares Rodrigues, 2000), constitui um documento histórico notável pelo que revela das angústias e dos quotidianos de um “antifascista” no ocaso da vida. Vegetando entre o PS e o PCP, militante da União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), Eleutério envolveu-se na Liga Portuguesa dos Direitos do Homem, de Vasco da Gama Fernandes, que depois, com amargura, viu ser transformada na CIVITAS - Associação de Defesa da Promoção dos Direitos dos Cidadãos, quanto a si mais conformista e alinhada com o sistema. Continuou a pôr o cravo à lapela nas ocasiões da praxe, a ir às almoçaradas dos capitães de Abril e aos jantares na Casa do Alentejo, a participar em comissões de homenagem a falecidos, a frequentar a tertúlia do café Luanda, na Avenida de Roma, onde pontificava o dr. Zenha, a apoiar a candidatura deste a Belém. A dado passo, desentendeu-se com Soares, por considerar que este fora complacente em excesso com os ex-agentes da PIDE (escreveu mesmo que “milhares de democratas sentem-se traídos nas suas convicções democráticas pelo camarada Soares”), mas reconciliou-se com ele aquando do acidente de João na Jamba e acabou condecorado com a Ordem da Liberdade, em 1995. No 10 de Junho, no Porto, onde recebeu a comenda, evitou apertar a mão a Cavaco, figura que sempre odiou (“A minha mulher serviu-me um almoço fraco, mais parecia uma refeição à Cavaco Silva”; “Anthony Hopkins foi armado cavaleiro pela Rainha. E nós andamos armados em parvos pelo Cavaco”; “A princesa Ana caiu do cavalo. Só Cavaco não cai do cavalo do poder”). No seu diário, além do desprezo pelos EUA e das reservas quanto à CEE, abundam as tiradas mordazes, como esta: “Zita Seabra diz que continua a ser comunista. E eu digo que continuo a ser D. Afonso Henriques…”. .Em boa medida, Aristides Teixeira, de seu nome completo Aristides Francisco Martins Teixeira, nado na Maternidade Alfredo da Costa aos 6 de Julho de 1959, Caranguejo portanto, é - ou pretende ser - uma versão aggiornata e mais colorida do seu pai, cujo exemplo honrou, desde logo, através de uma pequena biografia, Vale a Pena Conhecerem…, saída em 1977, com prefácio de Vasco da Gama Fernandes, e cujo propósito, bem plasmado no título, visava reparar uma injustiça histórica, resgatando Eleutério do vil esquecimento a que o tinham votado. Mais do que o pai, porém, seria ele a tirar os dividendos dessa empresa memorialística, pois, segundo diz, o livrinho converteu-se em best-seller e, graças a ele, foi convidado por Maria do Sameiro Souto para entrar no programa “Bota das Sete Léguas”, da RTP, onde prosseguiu com “Tele-Juvenil”, “Gente Nova”, “O Jornalinho”, “Lugar aos Novos”, “Sempre em Forma”, “Quadrados e Quadradinhos”, “Porque Hoje é Sábado”, de Manuel Luís Goucha e Fátima Medina, “Luz Verde”, “Cacilheiro do Amor”, ou ainda “Eu Show Nico” e “EuroNico”, em que fazia de pirata num barco saudoso, capitaneado por Nicolau Breyner. Como se não bastasse, ainda fez dobragens para o “Urso de Colargol” e para a “Rua Sésamo”, apresentou uma Grande Noite do Fado, andou pelo mundo da moda, entrou na peça “Arsénico e Rendas Velhas”, foi jornalista de A Luta, júri no Festival da Canção Política, ao lado de Mário Castrim, Ary dos Santos e de Baptista-Bastos, esteve nas brigadas de alfabetização, na zona de Mértola..Na infância e juventude, frequentara a Creche da Tapada das Necessidades, o Centro Republicano de Alcântara, a Escola Francisco Arruda (onde foi colega de Marina Mota), a Escola Industrial Fonseca Benevides e, depois, o Pedro Nunes. Sucessivamente, sonhou ser engenheiro naval, arquitecto paisagista, jurista e médico-veterinário, pois, confessa, tem “panca” por animais. Nos alvores dos anos 1980, criou e liderou um autointitulado Movimento de Escritores Novos, que se apresentava assim: “esta associação intelectual é o nosso florete contra a hostilização e contra o silêncio que os trapos, mandarins pletóricos e barrigudos teimam vicejar. Não cederemos. Não nos demitiremos desta oportunidade chamada Abril.” O Movimento perpetrou três números de Madrugada: Poemas, uma antologia de horrores em verso e em prosa onde encontramos - delicioso! - um jovem aspirante a ficcionista e a economista, Francisco Jaime Quesado, o qual, segundo o próprio, tinha já obra na forja (O Incêndio das Palavras, contos) e alimentava “projectos para o futuro, com vista à instalação duma nova ordem literária para Portugal”. Ignoramos se aquele Incêndio das Palavras terá mesmo vindo a lume e, em caso afirmativo, se pôs realmente em fogo a república das letras lusas ou até se, por via dos seus contos pirómanos, o autor terá logrado instalar uma nova ordem literária em Portugal. O que se sabe, sim, é que, com o poema “Para Sempre” (“A ti, flor da minha perdição/exaltação do meu ser,/realização dos desejos meus,/este poema”), Francisco Jaime Quesado ganhou o Prémio Nacional de Literatura do Feijó e, talvez por isso, acabou nomeado presidente da ESPAP (Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública) em 2014, pelo governo de Passos Coelho. Que diria disto o velho Eleutério, é melhor nem perguntar. .Enquanto isso, Aristides terminou o liceu, frequentou sociologia, parece, fez-se professor a contrato, deu aulas na Azambuja e nos Olivais, mudou-se para o Laranjeiro em 1982, ano em que publicou, em edição de autor, A Gregos e Troianos, com prefácio de Urbano. O pai, um homem conservador, que saíra enojado de um filme de Cicciolina no cinema Olímpia (já antes não apreciara Emmanuelle, “por não perceber francês”), chamava-lhe um “estraga-vergas” (sic) e anotaria, a dado trecho: “o Aristides festejou o aniversário numa discoteca em Campo de Ourique. Creio que ele anda de namorico com uma rapariga que é relações públicas do Pátio Alfacinha”. Noutra entrada, fenomenal, quase pidesca: “Vi o Aristides acompanhado de uma garota às 8h45, corrijo, às 8h46 na Rua da Prata.” E outras ainda: “Lavei a louça que o senhor meu filho deixou para que o velho Eleutério lave. Enfim…”; “O meu filho deixou loiça para o preto lavar”. No mesmo registo higiénico: “Lavei o carro do meu filho. Ele é um relaxado.” Ainda assim, Eleutério ficava encantado pelas proezas do rebento, que comprara um “Citroen, linha de luxo” e que, por causa das aparições televisivas, era uma “figura pública”. .Aristides navegava então nas águas da CDU, pela qual foi candidato independente às legislativas de 1987 escrevia artigos na Seara Nova (sobre “origem e desenvolvimento do capitalismo”) e no Diário (contra o apartheid), discursava em comícios na Fonte Santa ao lado de Cunhal, Baptista-Bastos e Maria Santos, aos quais Eleutério assistia, embevecido: “o Aristides discursou sobre a esperança da Juventude num Futuro melhor. A sua sentida intervenção torna-o um excelente orador. Incendiou a assistência. Resumindo: foi brilhante. Para mim foi uma grande emoção ver e ouvir o meu filho e também vê-lo incluído numa galeria de notáveis.” Em 1989, viajou até à Coreia do Norte, para o Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, integrando uma comitiva onde avultavam Teresa Salgueiro, dos Madredeus, a jornalista Maria Flor Pedroso e o actor André Maia. Trouxe um relógio para o pai, veio de lá fascinado, achando a viagem “espectacular”. “Sobre o festival vem encantado com as coreografias, os ginastas o convívio entre povos de várias línguas, umas mais compridas que outras…”, escreveu Eleutério no seu caderno íntimo. Compreende-se: o Festival fora a resposta de Pyongyang às Olimpíadas de Seul do ano anterior e nele tinha sido gasta uma quantia astronómica, 4,5 mil milhões de dólares, um quarto do PIB anual do país, gerando uma dívida externa de 5 mil milhões de dólares, e precipitando as grandes fomes das décadas subsequentes. *** Em 1 de Agosto de 1987, Eleutério, premonitório, anotava no seu diário: “As portagens da Ponte aumentaram de preço. Um dia um “tornado” atingirá os utentes”. Descreverá depois, em Maio de 1992, uma audiência do filho em Belém, na qualidade de dirigente da Associação de Utentes dos Transportes Colectivos da Grande Lisboa, por causa dos passes sociais. Às voltas com as meias que descaíam dos pés, Soares recebeu-o “semi-deitado numa poltrona e enquanto bocejava manifestava a sua confiança numa solução próxima. No final do encontro, o estadista perguntou por mim.” Mais tarde, no histórico dia 24 de Julho de 1994, nova entrada no diário, eivada de mil esperanças: “um grupo de camionistas bloqueou o trânsito na Ponte 25 de Abril contra o brutal aumento da portagem anunciado pelo Ministro Ferreira do Amaral. Será que vai ser desta que o Povo começará a lutar em defesa dos seus interesses? Será isto o princípio do fim do cavaquismo?”.Nesse mesmo dia 24, quando subia a rampa dos Estúdios do Lumiar (a lendária rampa da RTP, sita ao lado dos terrenos da viúva do Batata), na companhia do jornalista Mário Lindolfo e de Alípio de Freitas, para gravarem o documentário “À Procura do Socialismo”, Aristides Teixeira soube que decorriam acesos protestos na Ponte 25 de Abril e logo se pôs em campo: “O meu filho como é irrequieto e cabeça de motim, não segue os conselhos do pai. Atira-se para as lutas cívicas. Eu já me sacrifiquei. Abdiquei do meu bem-estar. Sacrifiquei o núcleo familiar. O nosso contributo para um Portugal melhor já tem dose. O meu rapaz não concorda. Quer ser perseguido e esquece-se que tem família. Então pegou no telefone e falou com o Manuel Poças e com mais alguns amigos seus, utentes da Ponte, e convidou-os a apresentarem publicamente a proposta da Pró-Associação de Utentes da Ponte 25 de Abril. E foi o que fizeram esta manhã. Hoje ao fim da tarde realizou-se um debate na SIC no «Praça Pública» conduzido pela amiga do meu filho, Júlia Pinheiro. Foi uma emissão em directo que contou com a presença de autarcas e Aristides.” Não tendo participado na organização do protesto, a cargo dos manos camionistas Jaime e Mário Pinto, Aristides Teixeira logo se juntou a ele, na qualidade de dirigente da Associação de Utentes dos Transportes Colectivos da Grande Lisboa, atrás citada, que fundara em 1992. Rapidamente se tornaria o principal rosto da contestação ao pagamento das portagens na antiga Ponte Salazar. .“Tempo de Partir”, é o nome do capítulo em que, nas suas memórias políticas, Cavaco Silva descreve o “buzinão da Ponte” e a sua decisão de abandonar o cargo de primeiro-ministro (Autobiografia Política II, 2004, pp. 459ss). O seu assessor de imprensa na altura, Fernando Lima, falou, a este propósito, da “mais grave crise vivida pelos governos de Cavaco Silva” (O Meu Tempo com Cavaco Silva, 2004) e é indesmentível que, naquele Verão Quente de 1994, estava montada a tempestade perfeita: ao fim de vários anos de governação, a maioria PSD acusava indisfarçáveis sinais de desgaste; em Belém, no seu segundo mandato, Soares mostrava-se cada vez mais interventivo, colmatando aquilo que julgava serem as debilidades da oposição socialista, liderada por um Guterres desejoso de dar provas das suas capacidades de liderança. Por outro lado, e tirando partido da natureza mais institucional e circunspecta da televisão pública, os canais privados pressentiram o potencial do momento, a sua espectacularidade imagética, fazendo directos até às cinco da madrugada e debates castigadores para o governo, com destaque para o “Praça Pública”, na SIC, com Júlia Pinheiro. Para agravar as coisas, as habituais trapalhadas lusitanas: o aumento das portagens fora decidido em Conselho de Ministros cinco meses antes, mas arrastou-se pelos gabinetes ministeriais e a portaria só acabou publicada no jornal oficial a 3 de Junho, surpreendendo tudo e todos, Cavaco inclusive; pior ainda, a portaria era equívoca quanto ao dia da sua entrada em vigor, suscitando declarações desencontradas de Álvaro Magalhães, secretário de Estado das Obras Públicas, e Rangel de Lima, presidente da Junta Autónoma das Estradas. Além de um timing desastroso, a menos de duas semanas das eleições europeias, a portaria não fora acompanhada de nenhum esforço pedagógico ou comunicativo e quando, com o arraial montado, Ferreira do Amaral tentou explicar-se, dizendo que se tratava de um “actualização”, não de um “aumento”, ninguém percebeu a nuance, cuja subtileza esbarrava com o facto evidente de as portagens estarem efectivamente mais caras. Ao início, os protestos fizeram sentir-se de modo mais tímido, com os automobilistas em marcha lenta ou a pagarem a portagem com notas de valor estratosférico, para atrasar e dificultar o troco, isto enquanto iam vitimando os tímpanos dos portageiros com apitadelas incessantes. No dia 24 de Julho, uma sexta-feira, era feriado municipal em Almada, havendo, pois, uma enorme massa de gente disponível para lutar contra as portagens ou apenas para ir até à Ponte ver quem o fizesse. Com Cavaco Silva ausente em Corfu, numa cimeira europeia, Fernando Nogueira tornou-se o homem do leme, no que contou com o auxílio de Marques Mendes e dos assessores do PM, tarefa de que Nogueira saiu airoso, pese os percalços da praxe: o ministro da Administração Interna, Dias Loureiro, aterrou de helicóptero Puma na zona da confusão, mas, após ter falado com os manifestantes, regressou sem solução à vista; a GNR não dispunha de equipamentos para rebocar os camiões monstruosos e, quando se pediu o poderoso Rechover M-88 ao Regimento de Engenharia Santa Margarida, suscitou-se uma cruciante dúvida jurídica, a de saber se a Lei de Defesa Nacional permitia o recurso a meios militares naquelas circunstâncias. Obtida a resposta afirmativa, os militares de Santa Margarida decidiram apagar da viatura todos os elementos que indicavam que a mesma era pertença do Exército e, na vinda da máquina para Lisboa, seguindo instruções superiores, pararam em Alpiarça para um merecido e descansado almoço. Alcançaram Lisboa já a meio da tarde e o M-88, como é óbvio, nem chegou a ser usado, tanto mais que, entretanto, os camionistas, que transportavam brita e areia de Sesimbra para Lisboa, ameaçaram despejá-las ao chão do Pragal, bloqueando a capital. .O governo acabaria por recuar em parte, prometendo cartões pré-comprados, anunciando descontos para os motociclistas e suspendendo as portagens nos meses de Julho e Agosto, não sem antes se terem verificado graves incidentes entre os manifestantes e a GNR, dos quais, além de um ex-fuzileiro agredido, resultou um ferido grave, um jovem ajudante de pedreiro de 18 anos, vítima de uma bala perdida, que ficou paraplégico: Luís Miguel Figueiredo pediria uma indemnização ao Estado, em acção na qual foi representado por advogado Tiago Crisóstomo Teixeira, após o processo-crime ter sido arquivado, por nunca se ter provado que a bala fora disparada pela polícia. Convertidos em celebridades instantâneas, os irmãos Pinto foram rapidamente ultrapassados pelos acontecimentos, que, como é evidente, cedo deixaram de se centrar nas portagens para assumirem contornos políticos mais amplos. Na noite de 30 de Agosto, Pedro Abrunhosa & Os Bandemónio davam o mote para novos protestos, convertendo a música “Não Posso Mais” num hino de contestação ao cavaquismo, bisado no ano seguinte com a faixa “Talvez Foder”, do álbum F..Na reentré de Setembro, regressou o caos. Em Belém, Vítor Ramalho recebeu os manifestantes da Ponte e, num colóquio sobre direitos humanos, Soares usaria uma expressão célebre, o “direito à indignação”, palavras que Guterres considerou justas, mais do que legítimas, mas que passavam em claro o facto de, em 1983, o governo do Bloco Central ter aprovado uma resolução em que autorizava o uso da força para impedir os cortes das estradas e das comunicações, coisa que o PSD logo lembrou nos jornais, para irritação de Soares. .Em Outubro, anunciou-se uma gigantesca caravana automóvel na Ponte, apoiada por 58 notabilidades, entre as quais Manuel Alegre, Helena Roseta, Francisco Louçã, José Saramago e Baptista-Bastos. Na caravana, destacar-se-ia dois deputados socialistas, Armando Vara e Crisóstomo Teixeira, enquanto Guterres proclamava que o aumento das portagens era ilegal, que o governo devia ceder aos protestos e que eram ilegítimas as portagens nas regiões suburbanas. À direita, curiosamente, ou talvez não, Manuel Monteiro radicalizou ainda mais, instando o Presidente da República a convocar uma reunião extraordinária da Assembleia para discutir a questão das portagens e da violência policial, proposta que acabou sendo apoiada pelo PS e pelo PCP, mas a que Soares, obviamente, não deu seguimento. Na bancada laranja, Duarte Lima liderava a difícil defesa das posições do governo, dando as tácticas aos ministros mais precisados, com destaque para Ferreira do Amaral, que por duas vezes tentou demitir-se. .Os ânimos acabaram por serenar, surgiu o tabu de Cavaco, Guterres venceu Nogueira, e, uma vez chegado ao poder, o governo do PS informou, através do ministro da Presidência, António Vitorino, que, afinal, não iria abolir as portagens na Ponte 25 de Abril (cf. Público, de 12/10/1995). Por azar dos Távoras, 25 deputados socialistas tinham apresentado, em Julho de 1994, no calor do “buzinão”, um requerimento para que o Tribunal Constitucional declarasse a inconstitucionalidade da portaria de Ferreira do Amaral: em Novembro de 1995, o Tribunal decidiu, por unanimidade, que a portaria não era inconstitucional, coisa que já nem mereceu destaque nos media, mas que foi uma bênção para o novo governo do PS, cujo primeiro-ministro, António Guterres, informou não ter agenda para receber a associação de Aristides (e o secretário de Estado da Administração Interna, Armando Vara, remeteu-a para a GNR). .Não foi o piquenicão, mas tudo comeu da ponte: segundo o juiz Carlos Moreno, a derrapagem financeira da Lusoponte orçava já, em 2010, os 400 milhões de euros (Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro, 2010). Nos anos vindouros, Ferreira do Amaral seria deputado, candidato à câmara de Lisboa e, em 2006, por morte de Morais Leitão, tornou-se presidente do conselho de administração da Lusoponte, cargo que exerceu durante 16 anos, até Março de 2023. Fernando Nogueira foi trabalhar discretamente para o BCP, Dias Loureiro envolveu-se em negócios complexos, nos quais, segundo Aristides, “pagou a factura de nos ter mandado espancar” (DN, de 28/6/2008), enquanto Armando Vara subiu a secretário de Estado da Administração Interna e, mais tarde, a ministro de Sócrates. Crisóstomo Teixeira seria nomeado secretário de Estado das Obras Públicas, de 1955 a 1997, presidente do conselho de administração da CP, cargo que exerceu de 1997 a 2003, e, de 2007 a 2011, presidente do Instituto de Mobilidade e Transportes Terrestres (o Tal & Qual, de 21/6/1995, promoveria um aprazível encontro entre Crisóstomo e Aristides, no qual o governante foi afirmando, muito simpático, que não pagar portagens era um “desafio”, um “elemento saudável” que “levava o Governo a reflectir”, mas tirou-lhe o sentido quanto a uma abolição, culpando de caminho o anterior executivo e o contrato com a Lusoponte). Também no domínio da música, o incendiário concerto da Caparica deu “um novo fôlego à carreira de Abrunhosa” (Público, de 15/4/2009), salvando-a do marasmo em que se encontrava. .Em Dezembro de 1994, Duarte Lima foi substituído por Pacheco Pereira na direcção da bancada laranja, após O Independente ter noticiado que uma sobrinha sua, pese ter rendimentos modestos, era proprietária de uma quinta com três hectares em Sintra. O processo fiscal da quinta de Sintra seria arquivado e, em 1998, Duarte Lima derrotou Passos Coelho e Pacheco Pereira na corrida à distrital de Lisboa do PSD. Hoje, aguarda julgamento por alegado homicídio de uma cliente sua, no Brasil, enquanto Armando Vara, aguarda igualmente um eventual regresso à cadeia, onde já cumpriu pena. Jaime e Mário Pinto foram condenados, em 2005, a oito e sete anos de prisão, respectivamente, por tráfico de droga e contrabando de tabaco: Jaime andou três anos em fuga, com identidade falsa, mas acabou detido em Vilamoura, em Fevereiro de 2013. Faleceu em 2021 e, pior do que isso, recebeu as condolências de André Ventura, por ser um destacado militante algarvio do Chega, o partido dos “portugueses de bem”. Faleceu também, em larga medida, o partido de Manuel Monteiro, entretanto apeado da liderança pelo seu mentor, Paulo Portas. Aníbal Cavaco Silva foi eleito e reeleito Presidente da República e António Guterres cumpre actualmente o seu segundo mandato como secretário-geral da ONU. .Em face de tudo isto, quase apetece dizer que Aristides Teixeira acabou por ser o tolito deixando a meio da ponte, o idiot utile que deu a cara pelo protesto, mas que acabou usado por gente mais habilidosa do que ele, que o descartou e deixou cair logo à primeira curva. Em finais de Julho de 1994, o seu nome ainda surgia em destaque, como gostava, dando uma conferência de imprensa em nome da Pró-Associação dos Utentes da Ponte 25 de Abril; mas, duas semanas depois, em 18 de Agosto, queixava-se já de estar a ser marginalizado da associação que fundara e de que esta era alvo de instrumentalização de “um grupo de pessoas pró-comunistas” (A Capital, de 18/8/1994). Muito alinhado com os contestatários da Ponte, O Independente traçou-lhe na altura um perfil radioso e heróico, chamando-lhe “Pirata Negro”, para júbilo de Eleutério, mas nem isso evitou que Aristides caísse no esquecimento, contra o qual procurou lutar desesperadamente, esbracejando com o ardor dos náufragos. No início de 1995, constituiu uma nova associação, desta feita a ADU, Associação Democrática de Utentes da Ponte 25 de Abril, e, dois meses depois, anunciava a sua candidatura à Presidência da República, por sinal no mesmo dia em que surgiu outro challenger de igual quilate, Carlos Ferreira, 46 anos, empregado de mesa, com candidatura lançada no Massamá Shopping Center e a promessa de “fiscalizar as empresas que mandam reprimir os trabalhadores.” .Aristides adoptou o lema “Uma Ponte para Belém”, assumiu-se como “alternativa ao exercício do poder discricionário.” No lançamento da candidatura, segundo o próprio, e além dele e do mandatário, o fiel Manuel Poças, compareceram os encarregados da sala, uma mulher de limpeza e um funcionário da Securitas. A campanha andou pela Pedreira dos Húngaros, pela Feira da Ladra, foi até à Musgueira, onde o candidato apreciou ser comentado por duas moças, “com o despudor inquietante da Lolita de Nabokov”. Enquanto tal sucedia, o mandatário acumulava multas por estacionamento indevido e, a dado passo, viu mesmo o seu Dyane rebocado para o parque da GNR em Algés. Na candidatura colaboravam, acentuou Aristides, um electricista, com curso tirado na Fonseca Benevides, um fiel de armazém do Café Nicola, uma vendedora de lingerie porta-a-porta, uma funcionária da Câmara de Comércio Portugal-Itália, um informático e, naturalmente, um camionista de pesados. Às voltas com o aluguer de uma sala, questão tratada com “o sr. Araújo, da Imobiliária Bem-Hajam”, Aristides nem resposta teve aos seus pedidos para visitar o Museu Maçónico, o Museu da República, o Atlético Clube da Musgueira, o Futebol Clube do Casal Ventoso ou o Clube Recreativo “Estrelas do Feijó”. Curiosamente, na Assembleia só seriam recebidos pelo deputado António Vairinhos, do PSD. .Apesar disso, o candidato, é óbvio, acabou ofuscado pelas luzes da ribalta e, entre outras infantilidades, deu uma entrevista piadética e patética ao Tal & Qual, de 3/11/1995, na qual surgia de peito ao léu, reclinado numa espreguiçadeira, de charuto na mão e óculos escuros, rodeado de moças em biquíni. “Votem em mim e gozem a vida”, dizia, refastelado na Quinta dos Cavaquinhos, para os lados do Fogueteiro. “Ele promete-nos uma boa vida!”, exclamava o tablóide, informando que o “sr. buzinão” tinha como programa político “vivendas com piscina e bons carros para todos os portugueses”. Acabou por desistir por falta de verbas e de assinaturas, deixando desalentados aqueles a quem já tinha prometido emprego em Belém, como o actor Octávio de Matos e o radialista Nunes Forte. Depois, é evidente, escreveu um livro sobre essa jornada inglória (Histórias da Desistência. Por que não fui Presidente da República, 1997), obra que enternece e comove ao mostrar o que é uma campanha política destituída de cabeça, meios e apoios, excepção feita, e o autor agradece-lhes, aos cabeleireiros Moda Jovem e Helenarte, à Novimago, à Ervanária Nova Esperança, ao Bazar do Vídeo e ao Clube de Vídeo Mil. .Aquando do impedimento temporário de Jorge Sampaio, em 1996, Aristides ofereceu-se para o substituir em Belém, algo que teria sido original e até engraçado, mas contrário à letra da Constituição da República. Em 1997, segundo Eleutério, o filho ainda conspirava com “algum secretismo” para um novo “buzinão”, na companhia de Manuel Poças. Três anos depois, voltaria a protestar na Ponte do Pragal, acção que durou alguns minutos, mas que Teixeira considerou “muito positiva” (Visão, de 23/10/2021). De permeio, notícia de uma Frente Nacional Contra Portagens (FNCP), fugaz e inconsequente, tudo em claro contraste com as carreiras mais promissoras de outros da sua idade, a quem Eleutério, certeiramente, prognosticara grandes futuros, como Santana Lopes (“este rapaz ainda há-de ser alguém”) e António Costa (“este miúdo ainda vai a ministro”). Num certo sentido, Aristides Teixeira é um António Costa às avessas, azarado, desmiolado, alguém que, guardadas as devidas distâncias, tem uma genealogia antifascista em tudo idêntica à do primeiro-ministro, que trata aliás por tu, pois foram colegas no Liceu Pedro Nunes, onde se tornaram amigos justamente por descenderem ambos de resistentes ao salazarismo. O que é o encanto da vida, as linhas cruzadas do destino: António Costa também esteve na TV, no mesmíssimo programa por onde Aristides começou, “Bota das Sete Léguas”, e aí entrevistou, inter allia, Paulo de Carvalho e Carlos Mendes. Numa vida-outra, António poderia ter sido Aristides, e este primeiro-ministro, não foram as contingências da existência e muita falta de tino, que, entre o mais, o levaram a não acabar o curso, a não apostar no partido e nos amigos certos, a preferir a boémia e a companhia das celebridades da TV e outras, como Lili Caneças, entre as demais e muitas vedetas que abrilhantam o seu último livro, Abril que os Pariu, prefaciado por Joana Amaral Dias. .Além de ter estado ao lado de Pina Moura numas tertúlias organizadas pelo PSD no ano 2000, no Martinho da Arcada, com moderação de Leonor Beleza, Aristides Teixeira continuou a desmultiplicar-se num sem-fim de iniciativas, como um minuto de silêncio em memória de Carlos Castro, no Jardim da Estrela, uma rua em seu nome (Catarina Vaz Pinto informou-o que não existiam ruas disponíveis), as causas dos infortunados Licínio França e Florbela Queiroz (esta, com o apoio de “Querido, Mudei a Casa”), o SOS Moçambique, para auxílio às vítimas das cheias (em conjunto com Eusébio), fundou a associação cívica Lusofonia, Cultura e Cidadania, que, entre o mais, promoveu uma manifestação em prol dos moradores num bairro semiclandestino da Costa da Caparica. Falou no 1.º Congresso da Democracia Portuguesa, em 2004, foi cronista do Destak, comemorou os 20 anos do “buzinão da Ponte”, ao lado de Vasco Lourenço. Depois, o impensável: nas autárquicas de 2017, candidatou-se como independente nas listas do CDS-PP, imagine-se, almejando a vice-presidência da câmara de Almada, mas os populares não foram além dos 2,78%, abaixo do PAN e pouco acima do PCTP. .Comparados os percursos de Eleutério e de Aristides, e salvaguardadas as devidas distâncias, somos tentados a concordar com Mark Twain, quando um dia disse que “a História jamais se repete, mas às vezes rima.” Aristides Teixeira continua a morar na Margem Sul, passeia pela Mata dos Medos. Desprezou a “troika”, apoiou a “geringonça”, é hoje avô e decerto feliz, mas não está contente com o actual panorama televisivo, onde “reina a mediocridade em apresentadores, jornalistas e conteúdos”. Em entrevista a Fernando Alvim, disse, com mágoa, que só ele e a “malta dos lares de terceira idade” o reconheciam. Deitou ao lixo os recortes dos jornais e revistas com a sua pessoa, que eram muitos, confessa, talvez menos dos que ambicionasse. Na RTP, onde trabalha na direcção de produção, encontrou por casualidade António Costa, rodeado de administradores e seguranças. Abraçaram-se, Aristides convidou-o para apresentar o seu último livro, Costa pediu que lho enviasse para São Bento, prometeu que iria lê-lo. Depois, nada mais se soube. *Prova de vida (52) faz parte de uma série de perfis