“Aqualtune é inspirada numa linhagem de mulheres africanas guerreiras de elite”
Aqualtune é uma figura que faz parte da mitologia brasileira, a qual refere a sua condição de princesa congolesa escravizada, mas não há fontes que confirmem a sua existência em terras africanas. Como foi criar esta personagem e enquadrá-la historicamente?
No Brasil, Aqualtune é “conhecida” e reverenciada em todo um acervo lendário, contraditório e enovelado, que cerca e enaltece a sua fascinante figura. Segundo a lenda, teria nascido no reino do Kongo, em datas muito díspares, e ali teria decorrido sua infância, juventude, casamento e captura em Ambuíla, a 29 de Outubro de 1665, no desfecho da celebre batalha que opôs os exércitos do reino do Kongo às forças do reino de Portugal. Tomando a Batalha de Ambuíla como baliza temporal, (re)criei a vida da jovem princesa em África, embora nenhuma fonte a refira. Onde a encontrei pela primeira vez em fontes escritas assumidamente fora do território esquivo e enevoado da lenda, foi no Brasil. Aqui, em breves e preciosos apontamentos historiográficos e toponímicos, surge-nos num documento de credibilidade incontestável, Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador Dom Pedro de Almeida de 1675 a 1678. Neste a “nossa” Princesa do Kongo é inicialmente mencionada pelo cronista quando da investida das forças do capitão Fernão Carrilho ao Mucambo chamado “Cerca de Aqualtune”. Mais elucida que “este é o nome da mãe do rei”, e descreve como os soldados de Fernão Carrilho romperam as defesas do Mucambo, “mataram muitos e surpreenderam nove ou dez”, tendo os restantes conseguido fugir. E sobre Aqualtune, prossegue: “a mãe do rei nem viva nem morta apareceu, e passados alguns dias se achou a dona que a acompanhava morta”. Adiante, neste mesmo documento voltamos a encontrar a nossa princesa no verdadeiro coração político do Quilombo de Palmares, onde havia uma “grande casa onde se reunia o Conselho de Chefes”, que incluía “Aqualtune e Ganazona, ou Gana Zona”, apresentados respetivamente como “mãe e irmão do rei Ganga Zumba”. O célebre Zumbi, que assumiu a liderança de Palmares até 1695, surge nestas fontes portuguesas como sobrinho do rei e Aqualtune seria pois avó do último e mais famoso líder da comunidade palmarina, o mais poderoso baluarte onde escravos encontravam a sua liberdade nos territórios da antiga colónia brasileira.
O reino do Congo (Kongo, na versão que adoptou para o livro e nesta entrevista) aceitou o cristianismo ao contactar com os portugueses no final do século XV. Como foi a coexistência entre a nova religião e os cultos tradicionais?
A princípio foi muito pacifica e muito prazerosa. D. Manuel I acolheu familiares do rei do Kongo, e há relatos de príncipes e princesas do Kongo a viver na sua corte. O Venturoso correspondeu-se com D. Afonso I, do Kongo, e os dois soberanos tratavam-se epistolarmente por “irmãos”. A chegada da religião católica e a sua coexistência com os cultos tradicionais, começou de forma pacífica. O território era imenso e os ministros católicos muito poucos. Não havia espaço nem motivo para eclodirem atritos, até porque o foco destes ministros começou por ser a conquista das elites Bakongo, pois é através delas que os novos cultos e os novos costumes se propagam. No reinado de D. Afonso II, porém, o rei quis banir esta religião que se opunha, agora com mais vigor, aos cultos e aos costumes tradicionais, o que era sentido como uma enorme violência e desrespeito pelos bakongo, maior grupo populacional deste grandioso reino africano, e por largas fações das elites. O rei seguinte pacificou os tumultos, e o catolicismo continuou a expandir-se paulatinamente.
De início, Portugal e o Reino do Congo foram aliados. Isso significou em algum momento uma relação em termos de verdadeira igualdade?
Em que medida podemos falar de “igualdade” se o poderia bélico português suplantava de longe o africano? A princípio, o diferencial não se fazia sentir. Ambos tinham necessidade uns dos outros. Os portugueses precisavam dos bakongo para se adentrarem no território e ocuparem suas posições e desenvolverem os negócios. E os bakongo estavam fascinados com a tecnologia e com os objectos que os novos parceiros traziam. Toucas, trajes luxuosos, contas de vidro, armas, espadas, tecidos, etc. etc. Quando os interesses se tornaram conflituantes, a vantagem portuguesa concretizou-se de forma cada vez mais violenta.
No período em que se passa o romance, o Reino do Congo e Portugal estão em conflito, e os holandeses aproveitam para conquistar territórios a Portugal e fazer comércio com os congoleses. Mas estes últimos não trocam o catolicismo pelo calvinismo. O catolicismo era mais próximo das crenças originais? Ou a influência do clero português, que continuou muito respeitado em São Salvador do Congo, foi decisiva?
Creio que não é uma questão do foro religioso. Os católicos têm no Santo Padre, Vigário de Cristo na Terra, o líder supremo espiritual, o que faz dele o soberano dos soberanos. Os reis do Kongo respeitam profundamente essa figura e irão ter durante muito tempo a esperança infundada de serem reconhecidos pelo Papa, de quem esperam a concessão do estatuto de pares entre pares, como o que era atribuído aos seus congéneres europeus. É a força dessa aliança, que vários soberanos bakongo perseguem sem descanso e sem tentações calvinistas. Efetivamente, às igrejas da Reforma faltava-lhes essa figura tutelar de prestígio e de ampla unificação.
O tráfico de escravos, praticado por portugueses, holandeses e pelos próprios africanos, foi repudiado em algum momento por Garcia Afonso II, rei que seria o pai de Aqualtune?
Escravatura sempre existiu. Em África e no restante mundo, onde a regra determinava que populações dizimadas pela guerra fossem traficadas pelos vencedores. Por exemplo, mas não só. A grande novidade aqui, é a ausência de motivo e a obscena e descomunal escala. Não de imediato. Mas em meados do século XVI os números começaram a aumentar. Já não se trata de escravizar prisioneiros de guerra, ou criminosos de delitos vários. Trata-se de arrebanhar toda a gente que cai nas redes dos “lançados”, ou pombeiros e suas hordas bem armadas ao serviço dos detentores da melhor tecnologia bélica. Neste caso, os Portugueses. Aliás, a Igreja defendia a menoridade espiritual, moral, biológica se quisermos, destacando a cor de pele dos africanos como motivo suficiente para serem reduzidos a tal extremo. Todos os reis do Kongo e da restante África subsariana bradaram contra estes crimes. “Éramos seres humanos, transformaram-nos num bando de macacos”, diz Garcia Afonso II numa das suas missas.
A reconquista de Luanda pelos portugueses foi feita a partir do Brasil. O Reino do Congo foi vítima da procura intensiva de escravos para as plantações brasileiras? Em Lisboa, o rei, na época D. João IV, estava consciente disso?
Os reis estavam, não só conscientes do que se passava, como apoiavam o tráfico, que garantia lucros prodigiosos. Os duques de Bragança até tinham um centro de reprodução de escravos no Palácio Ducal de Vila Viçosa, conforme atesta o italiano Giambattista Venturino que em 1571 por ali passou. Há um aforismo da época que resume tudo nesta frase: Sem África (escravos) não há Brasil. Sem Brasil, não há reino (português). O rendosíssimo negócio era praticado às escancaras por toda a Europa, por toda a África, por todo o Oriente. A Europa da Expansão não tinha gente suficiente para povoar esse Novo Mundo, o qual precisava de infinitos braços para desbravar as terras, torná-las produtivas, explorar as minas que iam aparecendo, e para ocupar os territórios, subtraindo-os aos seus naturais habitantes. Assim, os africanos, à medida que África ia sendo dominada pela força bélica dos europeus, eram capturados aos milhares, embarcados em condições ignóbeis e traficados no Novo Mundo por todos os que conseguiam deitar a mão a semelhante “matéria-prima”. E com o seu sangue se foram construindo os nossos pujantes impérios.
Há no livro figuras mulatas, como o padre Manuel Roboredo, que se sentiam confortáveis tanto em Lisboa como em São Salvador (hoje Mbanza Congo, cidade angolana). Realidade histórica ou ficção?
É uma realidade histórica. As figuras que atravessam o romance ilustram essa realidade e essas vivências, mas são ficcionadas. Desde o padre inquisidor, aos aristocratas que por ali andam. O padre Manuel Roboredo, filho de um aristocrata português e de uma senhora mukongo de elevada linhagem, existiu realmente, e encontramo-lo empunhando a cruz na Batalha de Ambuíla, acompanhando o seu parente e monarca. Mas a sua passagem por Lisboa é ficcionada.
Também fala das padeiras no bairro português. Há base histórica?
Houve muitos portugueses, homens e mulheres, elas sempre em menor número, que foram para o Kongo ensinar ofícios e que por lá ficaram. Ou por Luanda, onde uma comunidade de origem europeia, portuguesa, castelhana, holandesa, francesa, prosperou. Há fontes que referem concretamente como padeiras do reino foram ensinar as mulheres bakongo a fazer pão à nossa maneira.
As referências à Inquisição e aos autos da fé é uma forma de mostrar que a incivilização pode estar do lado do suposto civilizado? Há uma mensagem política neste romance, um elogio do outro?
Os autos de fé são uma manifestação da enorme crueldade do ser humano com a qual a Europa dos séculos XVI, mas sobretudo XVII e XVIII, conviveu com (alguma) naturalidade. A tortura é amplamente utilizada e a fogueira tem um destaque gigantesco e grotesco que a tornam numa celebração concorridíssima. O mesmo aconteceu com as guerras que nunca deixaram de estar presentes no quotidiano dos europeus. Não há nada de civilizado nisto. Nada disto abona em nome da civilização, seja ela qual for. Foi sobretudo esta mensagem que procurei transmitir e que, de alguma forma, enfatiza o paralelismo civilizacional das sociedades europeias e africanas nas quais a violência transparece de forma horrenda e impensável.
A célebre rainha Njinga, hoje heroína angolana, surge como personagem secundária no livro. Aqualtune é uma guerreira também, mas diferente?
Aqualtune é inspirada numa linhagem de mulheres africanas guerreiras de elite, que em suas infâncias foram fortemente apoiadas em suas pretensões combativas por pais e avôs complacentes, que as adoravam. É disso um bom exemplo a rainha Njinga da Matamba, que se fazia tratar por Rei, que cresceu a assistir aos actos de governação ao colo do seu avô, mas também a fugir dos ataques e das balas, ao colo da mãe. Mais tarde, a criança fez-se mulher e comandou exércitos, em defesa dos seus territórios. A presença dos missionários capuchinhos, e outros membros da clerezia católica em Luanda, e noutros territórios, nomeadamente no reino do Kongo, e também na sua corte, ressalvou-lhe em boa medida as suas memórias para memória futura. Mas, para além dela, há uma poderosa tradição de guerreiras por todo o continente africano. Desde Hatshepsut, no antigo Egipto (século XV a.C), que se auto proclamou faraó, passando por outras mais recentes, como a rainha Amina (c.1533-1610) neta do rei Zazzau que governava o território onde se encontra a atual Nigéria. e como Tassi Hangbé, que foi proclamada publicamente Rainha do Daomé e que criou para sua defesa um exército , composto apenas das suas melhores guerreiras que eram recrutadas e treinadas desde muito jovens - as Amazonas que continuam a ser reconhecidas como um símbolo da emancipação das mulheres. Aqualtune, pelo que realizou em África e no Brasil, é sem dúvida uma das mais destacadas personagens dentro desta galeria de mulheres notáveis.
Tudo acaba numa batalha que os portugueses vencem e que, em teoria, acaba com a escravização de Aqualtune. Essa batalha foi, de facto, o princípio do fim para o reino do Congo, que acabou submetido aos governadores portugueses de Luanda?
A batalha de Ambuíla foi o golpe de misericórdia no outrora grandioso reino do Kongo. A partir desta altura, os reis do Kongo passaram a ser colocados no trono pelas forças invasoras ao serviço dos governadores portugueses em Luanda, profundamente articulados com os interesses dos magnatas brasileiros. Foi então que finalmente deitaram a mão às minas de ouro e prata, apenas para descobrir que não existia nem ouro nem prata. Mais tarde, das sombras do que foi um grande império africano emergiram vários países desenhados a régua e esquadro no rescaldo da Conferência de Berlim, onde políticos ignorantes da realidade deste continente, esquartejaram África para dividirem os seus despojos pelos irmãos brancos.
Tem reações de Angola e Brasil ao livro?
Sim. Bastantes e muito auspiciosas. Mas em privado, de modo que não me sinto confortável em dizer nomes e citar elogios. Mas é sintomático que a primeira grande entrevista mal o livro saiu, tenha sido para um jornal angolano de Cultura, Artes e Letras.
O que mais admira na sua Aqualtune?
Tudo. Estou-lhe profunda e comovidamente grata, porque, através dela, (re)conheci o antigo Reino do Kongo em toda a sua grandeza, glória e desdita. E muito mais gente e muito mais mundo. Estive no Portugal em vésperas da Restauração e depois dela. No Brasil dos engenhos de açúcar e das Casas Grandes com suas Senzalas. Andei entre ricos, muito ricos, e pobres, muito pobres. Estive em Roma, como o padre Roboredo, que, de regresso ao reino, passou pelo Escorial a cumprimentar o rei das Duas Coroas. Vi grandeza nos mais inesperados corações e lugares. E miséria em palácios e outros espaços de riqueza tamanha. Assisti ao nascimento institucional da mais ultrajante calúnia que “premiou” África, suas riquezas naturais e humanas. A calúnia da melanina, uma teoria que foi ancorar-se no Génesis para que, dos púlpitos das igrejas se propagasse o direito “divino” de humanos se apropriarem de humanos, sem motivo algum, a não ser o do lucro inconcebível que tal negócio proporcionava a todos os envolvidos. Menos às vítimas. E nela, comecei por admirar o desassombro e ausência de medo físico, a sua poderosa vontade de se tornar guerreira, a alegria com que aprende a lidar com espadas, lanças, setas, trepando às copas das árvores mais altas, e a infantilidade com que deita a perder a primeira felicidade, o amor da sua vida. Aqualtune, a criança que se faz mulher e cresce entre perplexidades, desgostos, sobressaltos e júbilos, até o destino lhe cobrar o seu tributo, “capturou-me”. E, no desatar do nó da tragédia, a princesa, então duquesa de Mbamba agiganta-se.
Aqualtune: A princesa do Kongo
Manuela Gonzaga
Bertrand
496 páginas