Vou começar aproveitando a sua experiência de professor nos Estados Unidos e perguntar sobre os protestos nas universidades americanas, sobretudo contra a guerra em Gaza. Essa atitude politizada, num local que é de ensino, surpreendeu-o ou é algo tradicional nos Estados Unidos? Não me surpreendem os protestos. Estou surpreso sim com a reação das universidades. Estes protestos são muito semelhantes aos que ocorreram durante a Guerra do Vietname. Então, para os estudantes terem uma posição política e fazerem protestos é normal. A universidade chamar a polícia para entrar na universidade e retirar os alunos, isso é muito estranho. Vi, ao longo dos anos que morei lá, protestos contra muitas coisas nas universidades americanas, mas não houve nem esta dimensão, nem a reação que impedisse os estudantes de protestarem. É um conflito delicado e complicado, há sensibilidades muito opostas, não me surpreende que haja uma reação política..As universidades americanas cultivam esta atitude política? Não creio. Acredito que seja um produto da própria juventude. Ou seja, a politização dos estudantes não é estimulada pela instituição. Acredito que o que existe é simplesmente que, quando há debates na sociedade, o normal é que a universidade seja um espaço mais aberto e livre para se expressar..Podemos também dizer que os Estados Unidos, e já não estamos a falar da situação nas universidades, estão envolvidos numa espécie de guerra cultural? Por exemplo, wokismo vs o trumpismo. E que isto também é o resultado de um fosso entre as elites instruídas e as massas que não têm acesso à cultura? Há guerras culturais nos Estados Unidos, há guerras culturais na Europa, em Portugal, em Espanha. As guerras culturais são normais, porque para mim a cultura tem um carácter essencialmente político. A cultura, de alguma forma, explica o mundo onde estamos e o mundo que queremos. Portanto, há conflitos entre formas de entender isso. Não creio que seja um conflito entre as elites e a restante sociedade, porque os conflitos são de diferentes tipos. Há um conflito que tem a ver com a questão da imigração, há um conflito que tem a ver com questões de género, há muitas variações. Acredito que simplesmente, como acontece na Europa, os debates políticos manifestam-se culturalmente..Não há oposição, pelo menos teórica, entre as pessoas que têm acesso a uma cultura clássica, uma cultura erudita, e a cultura de massas, a cultura popular? Penso que não defende que exista uma cultura superior à outra, mas serão duas culturas diferentes? Não, não estou a dizer que não exista uma cultura superior à outra. Acredito que existe uma cultura superior à outra. Simplesmente acredito também que tudo é cultura. O que acontece é que existe uma cultura que dá possibilidades de mais complexidade ao ser humano e uma que é simplificadora. Mas tudo é cultura. E acho que essa diferença tem a ver com a origem da nossa visão do mundo. Se extrairmos a nossa visão do mundo a partir de uma fonte de informação muito limitada, como está a acontecer agora com as redes sociais, onde as pessoas têm apenas um canal de informação sobre o mundo, então estaremos menos abertos à complexidade das coisas que acontecem do que se tentarmos buscar diferentes fontes de conhecimento. Acredito que não é tanto que alguns sejam treinados na tradição clássica, mas que tudo depende se a tradição ou o conhecimento que se alimenta é muito e variado ou é pouco e limitado. O que produz estas tensões é precisamente a dificuldade de comunicação entre pessoas que falam linguagens diferentes..A escola pública tem a missão de dar às pessoas a oportunidade de acesso à cultura erudita, de conhecerem algo que muitas vezes não existe no ambiente familiar. Mas ao mesmo tempo sentimos que a escola deixou de funcionar como elevador social. Há aqui um fracasso da escola em levar esta cultura mais erudita a uma grande camada da sociedade? Acredito que se há um fracasso da escola é um fracasso da sociedade. A escola é apenas o reflexo da sociedade. Existe hoje a ideia de que a escola pública tem que preparar as pessoas apenas para o trabalho. Há uma preocupação muito grande em dar oportunidades às pessoas, em capacitá-las para trabalhar, para encontrar um bom emprego. Acredito que o fracasso atual é porque a escola deixou fazer as duas coisas: dar às pessoas formação profissional, mas também formação como cidadãos. Uma formação crítica, uma formação humanista, que nos permita pensar os problemas que existem hoje na nossa sociedade..É muito crítico em relação ao facto de existirem crianças e adolescentes que, por opção escolar, fazem uma separação entre humanidades e ciências. Como se quem vai estudar ciências não precisasse das humanidades. Sim. E acho que é um problema muito sério. Todos esses cientistas e técnicos que estão a desenvolver a inteligência artificial são pessoas com uma formação que não inclui filosofia, história ou literatura. Ou seja, na sua formação não há reflexão sobre o que é a experiência humana e quais são as necessidades do ser humano. Então, por um lado existem humanistas que nada sabem sobre tecnologia e por outro lado a tecnologia está esvaziada de conteúdo humanista. E isso é muito perigoso. Seria muito desejável que médicos, advogados, engenheiros, todos tivessem acesso e conhecimento sobre coisas que são fundamentais na história da humanidade e que são comuns a todos. Não empobrecem, pelo contrário, enriquecem o nosso debate. Portanto, não há necessidade de formar apenas especialistas. Devemos formar cidadãos. Parece-me muito triste que hoje em dia se uma família tem um filho ou filha razoavelmente inteligente, queira que estude algo onde ganhe muito dinheiro. Se esse jovem estuda história ou filosofia, enfrenta um descontentamento grande porque as pessoas perguntam, ah, como vai ganhar a vida? E pensam na educação como um investimento que tem de ter retorno direto. Mas a realidade é que não sabemos hoje como será o futuro destes jovens. Portanto, é muito difícil preparar os jovens para o trabalho do futuro se o trabalho do futuro ainda não existir. Portanto, devemos preparar os jovens para terem conhecimentos fundamentais..Mas também há críticas aos jovens que só estudam humanidades e que não têm interesse pela ciência, ou que não sabem fazer um cálculo matemático básico. Claro. Para mim o fundamental deveria ser que a pessoa tem que ter conhecimento de história, de filosofia, tem que saber ler bem, que saber escrever bem, tem que saber matemática, tem que ter base científica. Porque sem essas bases fica muito difícil falar sobre o que está a acontecer hoje. Existe um grande medo do desconhecido. Parte dos problemas políticos da nossa sociedade é que as pessoas têm medo do que não compreendem. Então, acredito que o fracasso da escola não está a ajudar as pessoas a terem uma visão global do mundo. É preciso que as pessoas conheçam a história..PAULO SPRANGER/Global Imagens.Falando um pouco sobre o contexto da Espanha, estou muito curioso por lhe perguntar se Dom Quixote é um livro de que um espanhol médio tem conhecimento, ou deu origem a uma personagem popular no mundo inteiro, mas não é lido pelos espanhóis. Acredito que a maioria das pessoas em Espanha não leu Dom Quixote. Mas isso não é surpreendente. A maioria dos franceses pode não ter lido Stendhal. Muitos ingleses não leram Shakespeare. Não me surpreende. Mas é verdade que agora está a acontecer algo que é muito complicado. No sistema educacional, os jovens só leem livros curtos..Mas, por exemplo, o Lazarinho de Tormes, outro clássico espanhol, pode ser lido? É lido..Porque é pequeno? Porque é pequeno..Portanto, há um clássico que os espanhóis leem. E leem porque é leitura obrigatória na escola?Bem, leem porque é leitura obrigatória na escola. Muitos deles fazem isso. Mas muita gente descobre esses clássicos tarde..Dom Quixote continua a ser publicado? Novas edições são feitas. Continua a vender. .Então, mesmo que não tenha sido lido, as pessoas têm um Dom Quixote em casa. Acho que também pode ser lido. Diz-se muito que as pessoas não leem agora. Não é verdade. Qualquer editor pode demonstrar que as pessoas estão a ler mais do que nunca. No século XIX, a literatura era muito importante. Mas as pessoas, a maioria, não sabiam ler. Agora a população está mais alfabetizada. Têm acesso a uma oferta muito rica. Nem tudo o que leem é boa literatura, claro. O que uma pessoa instruída lia no século XVII eram muito poucas coisas. Porque havia muito poucas coisas para ler. Agora, qualquer pessoa que esteja a ler tem um problema de escolha. Porque diz: posso ler Dom Quixote ou posso ler Salman Rushdie. Qual dos dois leio? E há esse frenesim de novidades que torna os clássicos menos conhecidos. Mesmo assim, a minha impressão é que esses livros ainda têm alcance. Mas há muitos que não estão na moda. E deve ser aceite. Há livros que eram clássicos e muito importantes e agora as pessoas não leem porque acham muito aborrecido..Mas Dom Quixote e Lazarinho de Tormes sempre foram lidos. Acho que sim, porque são livros divertidos..Em Portugal saiu agora o seu livro sobre cultura, mas o último que publicou em Espanha tem a ver com a representação artística da guerra. E sobretudo, quando a representação artística ou literária denuncia ou critica a guerra. Guernica é um bom exemplo do que fala no seu livro? Sim. Guernica é um bom exemplo de uma obra que teve um significado anti-guerra tão grande que tem sido usada como um símbolo anti-guerra em muitas guerras desde então. Foi citado na Guerra do Vietname, sempre apareceu em cartazes anti-guerra, em muitas campanhas. A questão é que Picasso nunca esteve na guerra. Portanto, a sua visão da guerra é a visão de alguém que não esteve lá. No meu livro também trato da visão da guerra dada por pessoas que estiveram em guerra. Como aqueles de nós que não estiveram lá têm aquele conhecimento via aqueles que estiveram lá..Pessoas que estiveram na guerra, mas não a mitificam, antes denunciam-na? Claro. Autores como Hemingway, como George Orwell, como Remarque, que escreveu Nada de Novo na Frente Ocidental, que foi um livro muito importante e continua a ser publicado. Todas estas pessoas que viveram a guerra, mas que não nos dão uma imagem gloriosa da guerra..Tem mais impacto do que Picasso porque são testemunhos? Bem, não sei, porque provavelmente Otto Dix, o expressionista alemão que esteve na Primeira Guerra Mundial, não tem mais impacto do que Picasso, porque sem dúvida Picasso é mais conhecido. Portanto, embora a visão de Dix seja mais direta do que acontece na Frente, a visão de Picasso é muito mais popular. Acho que uma das coisas interessantes sobre o facto de este livro sobre a guerra ter sido publicado depois deste é que ajuda a compreender que a guerra também é cultura..Está a falar sobre a forma de travar a guerra ou a forma de representar a guerra? Ambas. O facto de haver guerra tem uma base cultural. As guerras são muitas vezes travadas por causa de conflitos culturais. Atualmente há uma guerra na Ucrânia entre dois países com visões diferentes do que é uma nação. A Rússia considera que a Ucrânia não é uma nação e não tem o direito de ser uma nação soberana. A Ucrânia acredita que sim e defende a sua visão nacional. Isso é cultura..E é uma guerra em que os dois lados também tentam reivindicar os escritores como sendo russos ou ucranianos. Claro, e é uma guerra que se baseia muito na memória coletiva dos dois povos. O que está a acontecer também na Palestina é uma guerra com base cultural. Há uma memória coletiva diferente de dois grupos que possuem traumas diferentes no seu passado. E em que há também uma guerra religiosa, isso também é uma questão cultural. Portanto, às vezes as pessoas pensam, não, a guerra não é cultura. A guerra é o oposto da cultura, a cultura é o que nos salvará da guerra. Não, a cultura pode salvar-nos da guerra ou pode levar-nos à guerra. E a guerra é cultura. Desde as crianças a brincar com brinquedos de guerra, aos videojogos que os jovens jogam, ao cinema, encontramos imagens de guerra que nos familiarizam com a possibilidade de a guerra ser algo considerado normal. E, portanto, todos os países cultivam a memória gloriosa do seu passado militar..Felizmente, não há guerra entre a Espanha e os independentistas catalães, mas aqui também há duas narrativas. Como é que isso se concilia entre pessoas que são catalãs e se sentem espanholas? Acho que hoje devemos acostumar-nos com a ideia de que as identidades são complexas. Que as pessoas não têm uma identidade única. Há pessoas que vêm de uma família que pode ser de origem chinesa e têm uma identidade que vem dessa origem e outra identidade que vem da sua vida inserida na sociedade, em Portugal, em Espanha ou onde quer que seja. Acredito que esta ideia de que existe um conflito surge do pensamento de que as lealdades de identidade são simples. O que é isto ou aquilo? Essa polarização sempre. Vivemos em sociedades muito complicadas..Por exemplo, quando opta por escrever em espanhol ou catalão, as pessoas entendem como uma opção profissional ou podem entender como uma opção identitária? Há pessoas que tendem a entender isso como uma opção identitária. Eu, claro, tenho a particularidade de ter tido formação profissional nos Estados Unidos. Portanto, as línguas profissionais mais comuns para mim têm sido o espanhol e o inglês. Vivo o dia-a-dia em catalão. Mas quando se trata de procurar comunicação com um público, posso decidir se quero falar apenas para um público catalão ou para um público mais amplo. Essa é uma decisão que tem uma dimensão política, claro. Alguém poderá dizer que não, que a preocupação com a língua catalã leva-o a fazer essa opção de utilizá-la sempre..Então, sente-se confortável quando sai para a rua e pede um café em catalão tal como se sente confortável quando escreve em espanhol ou inglês para uma audiência mais vasta? Absolutamente. Sou catalão de origem, filho de catalães. E não tenho problemas em mudar de um idioma para outro. Para mim, o bilinguismo é um estado natural..Em todo este conflito em Espanha e na Catalunha, alguma das partes tentou envolvê-lo nisto? É evidente que em algum momento há pessoas que lhe dizem que deveria assumir esta ou aquela posição. Cada um aceita a que achar melhor. Para mim é evidente que a Catalunha é uma nação. Sinto a Catalunha como nação. Mas isso não me obriga mais a usar uma língua. Justamente porque sinto-me livre dentro daquela nação para usar uma língua ou outra..Vê Espanha como um país de nações. Exatamente. Para mim, a Espanha é um país de nações. E isto é algo que muitos espanhóis fora da Catalunha ou do País Basco, ou da Galiza ou de Valência, têm dificuldade em compreender. Porque têm uma visão mais monolítica..A escola pública da democracia não ensina a aceitar esta ideia de nações? A escola pública da democracia, uma das coisas que fez na Catalunha, que às vezes não é compreendida de fora, foi ajudar a integração social de todas as classes e dos imigrantes, fazendo do catalão a língua comum do ensino. Esse tem sido um grande elemento de integração social. Porque se o catalão fosse a língua dos catalães da classe média, ao longo da vida, e não fosse ensinado às populações imigrantes, ocorria uma divisão social. Foi a classe trabalhadora da Catalunha que pediu que a escola dos filhos fosse em catalão. Porque era a forma de ascender socialmente. Acredito que não houve tanto conflito nisso quanto parece do lado de fora. Normalmente falo com meus filhos em casa em catalão, mas eles falam espanhol também, e em boa parte dos filmes que veem, nas leituras que fazem, passam de uma língua para outra..Como o Ar que Respiramos - O Sentido da Cultura Antonio Monegal Objectiva 200 páginas