António Calvário: a idade da inocência
Vítor Higgs / DN

António Calvário: a idade da inocência

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Calvário da Paz é o que todos estamos vivendo, a braços com duas guerras sem fim à vista, mas é também, caso não saibam, o apelido do cantor e ícone António Calvário, que deixou cair o Paz do sobrenome não porque seja belicoso, que o não é de todo, e, menos ainda, porque não se reveja na herança recebida de seus pais, que muito ama e aos quais dedicou até a sua autobiografia, dada à estampa em 2008 sob o título Histórias da Minha História (Guerra & Paz). 

No prefácio a esta obra, Francisco Nicholson chama-lhe, entre outros mimos, “inquestionável Rei da Rádio”, “astro” e “aforrador de prémios”, tudo verdades como punhos, devendo lembrar-se que António Calvário foi o vencedor do primeiro Grande Prémio TV da Canção Portuguesa, o antecessor do Festival RTP da Canção, que conquistou em 1964 com a inolvidável Oração (“Senhor, eu confesso o perjúrio de tantas promessas”), música de João Nobre, letra do citado Nicholson e de Rogério Bracinha, a qual seria levada ao Festival da Eurovisão, em Copenhaga, onde foi recebida com assobios e apupos, não dirigidos ao infortunado cantor, mas ao regime de Salazar. Compreensivelmente, “Oração” ficou em último, 13.º lugar, com zero pontos, em honroso ex aequo com a Alemanha, com a Suíça e com a Jugoslávia. Na altura do incidente, convém notá-lo, o cançonetista ainda era completamente moreno, só tendo transitado para o loiro em meados dos anos 1960, por opção própria e artística que ainda mantém, pese agora se apresentar de cabelo mais para o acobreado, quiçá mesmo caramelizado, oscilando entre o castanho e um ferruginoso ruivo.  

António Calvário da Paz nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, aos 17 de Outubro de 1938, e viveu em Moçambique até aos oito anos de vida. Seu pai, António da Paz, era natural de Estômbar, no Algarve, onde viu a luz em 29 de Janeiro de 1890, tendo começado a trabalhar como mecânico de toda a ordem – automóvel, naval, etc. – em Portimão e em Setúbal, até decidir meter-se como clandestino no porão de um navio que levou até aquela antiga colónia portuguesa na costa oriental de África. Aí, fez um pouco de tudo: teve um “gazolina” que fazia os transportes entre Lourenço Marques e Catembe, dirigiu duas serrações de madeira no interior de Marracuene, amealhou o que pôde e veio até Portugal, mais precisamente ao Algarve, onde conheceu e se embeiçou por Adelaide Nunes Calvário, uma estudante assaz mais nova do que ele. Talvez por isso (António tinha 47, Adelaide só 24), e por uma certa diferença de status social, a família dela não apreciou o enlace, o que fez com que o casal rumasse, praticamente em fuga, de novo de volta ao trópico. O primeiro filho, António, nasceria pouco depois, nas vésperas da Segunda Guerra, e o segundo, Rui, em Outubro de 1942, dias após o começo da Batalha de Estalinegrado.  

Enquanto a Europa se afundava no caos e nas trevas, António Paz ia prosperando à custa de engenho, sorte e trabalho. “A família dos outros é sempre uma floresta escura”, diz um provérbio siberiano, que os Paz se encarregaram de desmentir, levando uma existência de transparente candura: tinha o primogénito cinco anos, mudaram-se para Vila Luiza, assim chamada em homenagem à filha do conselheiro Joaquim José Machado, engenheiro, militar e político que planeou o traçado da linha ferroviária entre Lourenço Marques e Pretória, foi governador de Moçambique e da Índia e ostentava uns bigodes de fazer inveja ao kaiser Guilherme (convém ver). Apesar de tudo isso, Vila Luiza, rezam as crónicas, era conhecida por Marracuene, em homenagem a um indivíduo de nome Muzrakwen, pelos vistos lendário, pois operava o barco que fazia a travessia entre as duas margens do Incomati, em terras onde, em tempos idos, Fevereiro de 1895, se travara uma crucial batalha entre as tropas comandadas pelo major Caldas Xavier e o exército ronga liderado pelo príncipe Zixaxa, afecto ao Gungunhana.  

Fechado este parêntesis wikipédico, é tempo e cumpre informar que a entrada de António Calvário no show bizz começou em tenra idade, ainda nos tempos de Lourenço Marques, e teve o seu quê de sinistro: aquando de uma visita do venerando Carmona a Moçambique, enquanto a multidão o aguardava, a laurentina Maria da Conceição de Vasconcelos, jovem e muito esbelta, resolveu pegar o bebé António ao colo, mas aquele, encontrando-se apertadinho, optou por despejar-se todo para cima do vestido da futura “Tatão” de O Pai Tirano, que certamente deve ter ficado ursa com tão lamentável episódio.    

As recordações de infância do “Tonecas”, o petit nom que então tinha, seguem o habitual registo Out of Africa, povoado de cálidas reminiscências dos banhos tomados no Incomati, das brincadeiras ao ar livre com colegas e vizinhos, o Capitão, a Palmira, a Suzana, o Augusto, o José Júlio, o Machambelano, com quem o filho do “senhor Paz” apanhava camaleões e gala-galas, das primeiras letras na Escola Roque de Aguiar, onde o ensino era misto e não havia discriminações entre brancos e negros: “nunca senti aí problemas ligados com o racismo, não havia uma orientação nesse sentido. Convivia com colegas negros, mulatos, chineses e indianos de forma bastante fácil. Sabe, quando estes valores são incutidos logo desde criança, abstraíamo-nos dessas questões que os adultos malformados propalam. E como era assim em casa e na escola, nunca fui induzido a desenvolver esses preconceitos rácicos, o que se veio a reflectir na minha vida adulta”, afirmaria a Luís Guimarães, no livro António Calvário: a canção de uma vida (Garrido, 2003). Em suma, uma sociedade paroquial e alegre – “vivíamos todos em comunidade, como se fôssemos uma grande família” –, agrupada em torno do saudoso Pavilhão de Chá e dos jardins fronteiros ao rio sagrado, povoado de hipopótamos, lembranças de episódios carnavalescos ou caricatos, como aquele em que o mainato Carlos se disfarçou de Pai Natal, e outros com laivos trágicos, como o de um filho de um empregado de António Paz que, indo banhar-se, acabou devorado por um crocodilo ou, outro ainda, em que o fiel Rodrigo tardou em ir buscá-los aos areais da Praia da Macaneta, vendo-se os Paz cercados por um bando de ferozes hienas.       

Na época, a família de António Calvário vivia já com conforto, servida por um cozinheiro, por um mainato para tratar das roupas e por dois empregados para a limpeza da casa. Graças a um golpe de sorte e de audácia, o pai comprou o que restava de um petroleiro grego naufragado próximo da ilha de Inhaca, carregadinho de ouro negro, o que lhe deu os fundos necessários para adquirir, pouco depois, o primeiro estabelecimento hoteleiro de Portimão, o Hotel Central. 

Em 10 de Abril de 1949, após um mês de viagem a bordo do Pátria, recém-adquirido pela Companhia Nacional de Navegação, os Paz desembarcaram em Lisboa, hospedando-se no Hotel Francfort, no Rossio, e depois seguindo para Portimão, onde António pôde conhecer finalmente o resto da sua família – a tia Angélica, os primos-irmãos Dido, Cândido e Zeca, o tio Casimiro, da Casa Inglesa, famosa pelos seus cafés, a tia Rudolfa, de Monchique, professora primária casada com o comandante Mateus de Campos, gente que o trata por “Titó” e a que até hoje permanece ligado, o mesmo sucedendo com a terra que o viu nascer e da qual diz, sem mágoas nem ressentimentos: “imagino o que seria hoje Moçambique se, com a independência, não se tivesse destruído tanto e se tivesse aproveitado o desenvolvimento de que desfrutava, o que conduziria a maximizar esse grande potencial. Mas as coisas são o que são e o caminho encetado foi em sentido diverso, mas parece que hoje em dia as coisas já estão a melhorar…”   

Como tantas vezes sucede, foi um acaso que o encaminhou para a música. Um dia, ainda em Moçambique, o director do colégio seleccionou-o para a récita do final de ano ou, melhor dizendo, escolheu-o por engano, julgando tratar-se de outro menino: “naturalmente que fiquei atrapalhado com a ideia, mas como tinha muito receio e respeito pelas hierarquias, e era ao mesmo tempo muito tímido, calei-me e na lição de piano que tinha à tarde contei o meu dilema à minha professora. Perante o facto, ela fez umas escalas ao piano, que eu vocalizei, tendo-a deixado surpreendida por lhe ter assegurado que nunca havia cantado, já que eu detinha um timbre de voz bonito e bem afinado.”, recorda ele, acrescentado que acabou por cantar em dueto com uma colega um tema de A Viúva Alegre, assim como a canção Maria Helena, muito em voga na voz de Rui de Mascarenhas. Um triunfo completo ou, como diz ele, sempre modesto, “foi uma grande surpresa para toda a gente, inclusive para mim, e ao mesmo tempo o despertar de um gosto novo por cantar que eu desconhecia até então.”  

Chegou a pensar ser padre, seguindo o exemplo de um sacerdote velhote que lhe dava catequese, mas a música estava-lhe no sangue, a ponto de ter perdido ao pai, como prenda de aniversário, não uma bicicleta ou um par de patins, mas que lhe pagasse lições de piano. Era amante de Chopin, sonhava ser pianista, vibrava com os sons que ouvia na rádio ou nas telas de cinema, nos musicais de Fred Astaire, Gene Kelly ou Ginger Rogers.  

Vindo para Portugal aos 8 anos, sempre um aluno mediano, completou a instrução primária com a tia Rudolfa, atrás citada, seguindo depois para o liceu municipal e para um colégio em Portimão. No 5.º ano do secundário (actual 9.º ano), encontrava-se já em Lisboa, onde frequentou o Colégio Académico e esteve hospedado numa casa de família, na Rua Palmira, só mais tarde transitando para a Rua de D. Estefânia, a sua primeira residência a sós, palco de inúmeros assédios por parte das muitas admiradoras. Uma delas, inclusive, chegou a deslocar-se lá na companhia da tia, alegando que António a engravidara, patranha desfeita ao fim de minutos, mas que o cantor ainda recorda.  

Na capital, prosseguiria os estudos de música, a cargo de uma prima-avó, a mítica Corina Freire, estrela da revista, cantora lírica soprano, actriz, professora de canto, compositora de marchas populares e empresária teatral, que, caso não saibam, foi convidada pela Paramount para viajar até Paris e ser a protagonista do primeiro filme sonoro português, A Canção do Berço, de 1930, e, em 1935, após ter vencido o concurso “Le plus beau sourire de Paris”, foi a primeira portuguesa a subir ao palco do Olympia, ao lado de Maurice Chevalier, e, no ano seguinte, actuou em Londres para a corte inglesa, com Eduardo VIII na plateia.   

Apesar da protecção de Corina, os pais tudo fizeram para contrariar a vocação artística do seu primogénito, sonhando que este fosse estudar Direito, fazer-se advogado de barra. A sorte, uma vez mais, veio marcar-lhe o percurso: um dia, em data não especificada, António atirou uma moeda ao ar, confiando-lhe a escolha entre a música e os estudos. “Eu acredito muito no destino e a moeda ditou que a pouco e pouco deixasse de estudar, a princípio sem conhecimento dos meus pais.” 

Em 1957, um grupo de amigos, que sabiam que António tinha aulas de canto, decidiu inscrevê-lo, sem ele saber, para prestar provas na Emissora Nacional, ao Quelhas. Acabou apurado à primeira, entre mais de 30 concorrentes, com a música Canta Brasil”, e, por já ter aulas de canto, foi dispensado da formação no Centro de Preparação de Artistas para a Rádio, mas não, obviamente, da detenção de carteira profissional, para o que teve de apresentar, entre papelada vária, uma carta avalizadora das suas qualidades profissionais, emitida pela amiga Hermínia Silva, em cuja casa de fados ao Bairro Alto António já actuava.  

Na Emissora Nacional, além das canções gravadas com a orquestra do maestro Tavares Belo, os históricos Serões para Trabalhadores, estes em directo, e sob a batuta do citado Tavares Belo, de Ferrer Trindade e de outros maestros. De permeio, muita “rádio publicitária”, como Calvário lhe chama, com os programas Vozes de Portugal, Passatempo PAC, de Arlindo Conde, rubricas ao vivo e com orquestra, gravados de terra em terra e transmitidos na Rádio Graça e na Rádio Voz de Lisboa com o patrocínio de marcas comerciais.   

Em 1960, conquistou o II Festival da Canção Portuguesa, realizado na Invicta, com outro dos seus temas míticos, Regresso, de Resende Dias e Maria Almira, com o qual Calvário, então um quase desconhecido de 19 anos, esmagou nomes consagrados como Artur Ribeiro, Luís Piçarra, Madalena Iglésias e Simone de Oliveira. Convertidos em hino do nacional-cançonetismo, os versos e os trinados de Regresso ainda hoje ecoam nos nossos tímpanos, tantas foram as vezes que passaram na rádio: “Ai ai ai / Ai ai ai / Velhos caminhos / Como é bom voltar / Ai ai ai / Ai ai ai.” Graças a eles, e a muitos outros, António andou em frenética tournée pelo país fora – e pelo estrangeiro –, arrebatando o coração de milhares de fãs, num sucesso que alguns já compararam ao dos Beatles e que, de facto, teve momentos insanos, como o de uma jovem a quem ele beijou castamente a face e que, chegada a casa, banhou o rosto e guardou a água num frasco-relíquia, como se fosse bento, episódio que levou Francisco Nicholson, mais malandro, a comerciar entre as groupies de Calvário, a preços módicos, uma mistela saponária que o cantor, obviamente, jamais tinha usado.  

A sábia Corina avisara-o, premonitória: “Prepara-te, António, para encontrares muitas adversidades na tua vida caso um dia te tornes famoso. As invejas vão denegrir a tua imagem, procurando destruir-te, inventando sem fundamento nenhum as mais variadas e distorcidas histórias, partindo tudo isso muitas vezes daqueles que te ajudaram a subir.” E, na verdade, Calvário seria perseguido por um sem-fim de boatos, como aquele que asseverava que se encontrava cego, rumor medrado no facto de um dia, ao visitar a Citânia de Briteiros, ter escorregado numa pedra e dado um trambolhão valente, ferindo-se na cara, perto da vista, o que o obrigou a andar com um olho pensado durante uns tempos.  

Com o triunfo, o dinheiro: recebeu o primeiro cachê, 50 escudos, por ter participado no programa Vozes de Portugal, gravado no Barreiro, de onde saiu eufórico com tanta massa, recebida num tempo em que ainda vivia com a mesada dos pais. Pouco tempo depois, estava a ganhar dez vezes mais, uns vultuosos 500 escudos por cada aparição nos Serões para Trabalhadores, que a Emissora Nacional organizava em parceria com a FNAT – Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, hoje INATEL. “Vais longe”, disse-lhe um dia Alfredo Marceneiro. E foi. 

A vitória no Festival da Canção abriu-lhe as portas dos grandes poisos da noite lisboeta da altura, com destaque para o Cabaré Maxime, mas não só, pois era frequentador, entre muitos outros, do Rossini, do Folie’s, na Rua Sousa Martins, ou da Cesária, retiro fadista em Alcântara. Em 1960, Maria de Lourdes Resende gravou com ele o EP (extended play) O Papá e a Mamã e, em 1961, Carnaval do Estoril, ano em que Calvário, por eleição dos leitores da revista Plateia, venceu o seu primeiro título de “Rei da Rádio”, que bisaria em 1963, 1965, 1966 e 1972, e em que gravou os êxitos Oração de Amor e O Meu Chapéu. Em 1962, além dos sucessos Desse Amor Melhor e Perdão para Dois, foi galardoado com o Óscar de Imprensa para Melhor Cançonetista Masculino, atribuído pela Casa da Imprensa. No ano seguinte, estreou-se na revista, no Teatro ABC, com Chapéu Alto, tendo editado os discos O Dia Mais Longo, Fado Hilário e Avé Maria dos Namorados, além de um álbum com Los Guaireños, do Paraguai.    

Foi por esta altura, de triunfo meteórico e estrondoso, que António Calvário transitou para loiro, tingindo o pêlo, mas nem isso o poupou, pelo contrário, aos avassaladores rumores que, por uma razão ou outra, insistentemente o perseguiram, os quais, mesclados com as invejas do meio artístico, o levaram a ponderar pôr um ponto final na carreira, então auspiciosa e ascensional. Curiosamente, ou não, desta feita foram os pais que teimaram para que prosseguisse, o que ele fez com inquestionável êxito, na rádio, no teatro revisteiro e, em 1964, também na 7.ª Arte, com o filme Uma Hora de Amor, de Augusto Fraga, onde contracenou com Madalena Iglésias, formando um par que muitos julgaram existir também fora da tela. Nesta, entrou em Rapazes dos Táxis, de Constantino Esteves, ao lado de Tony de Matos, filme de 1965, e, nesse mesmo ano, em Férias em Portugal, uma fita luso-francesa destinada ao mercado internacional. Em 1966, Sarilho de Fraldas, também com Madalena Iglésias, a par de António Silva, Josefina Silva, Nicolau Breyner e Tonicha. No cinema, e novamente pela mão de Constantino Esteves, O Amor Desce em Pára-Quedas, de 1968, com Paula Ribas, e O Diabo Era Outro, de 1969, com Milu. Este último saldou-se por um monumental fracasso financeiro e António, um dos produtores da película, quase ia indo à falência, sendo obrigado, in aperto, a actuar em vários circos, todos com nomes de antologia: Royal, Mexicano, Alegria, Paris, New York Circus, Cardinal, Texas, Paraguaio, Merito, Dallas e Brasil. Nos circos mais pobres, cobrava-se um cachê simbólico pelas actuações no final dos espectáculos, logo a seguir ao número de fecho dos palhaços.   

Ao longo da carreira, António Calvário terá gravado para cima de 300 discos, conquistou o Grande Prémio da TV Portuguesa, em 1964, concorrendo no ano seguinte e, bem assim, no Festival RTP da Canção de 1966 (com a canção Encontro Para Amanhã, 6.º lugar) e de 1968 (O Nosso Mundo, 7.º lugar), este último marcado por um inopinado desmaio de Simone de Oliveira e pela exclusão, ainda na fase preliminar de selecção, de Vejam Bem, de José Afonso. Em 1969, representou Portugal no I Festival da Canção Latina do Mundo, no México, onde ganhou uma medalha de ouro e ficou em quarto lugar, o melhor europeu, tendo actuado sob a direcção doutra figura de lenda, Franck Pourcel. A seguir, o mundo, especialmente os Estados Unidos e o Canadá, mas também os festivais de Aranda del Duero, o Festival Español de la Canción, em Benidorm, em Ibirapuera, no Brasil, o Onda Nueva, em Caracas, etc., etc. No meio de tudo isto, ainda arranjava tempo para escapulir para Madrid ao volante do seu bólide, na companhia de Paula Ribas e da mãe desta, com paragens obrigatória nas Galerías Preciados, no Corte Inglés e nas boutiques finas da capital espanhola, conquistadas graças a uma arma da época, o escudo forte.  

Hoje, a esta distância, é difícil apercebermo-nos do fenómeno que Calvário foi e sobretudo do alarido que causou entre a legião imensa das suas fãs, naquilo que terá sido, muito provavelmente, um dos primeiros sinais de que Portugal estava mudando, e que as jovens raparigas estavam a perder o recato de outrora, dos tempos em que teriam sido impensáveis aquelas aglomerações de miúdas aos gritos, extasiadas ante um astro-rei. No Porto, chegaram a cortar-lhe os pneus do carro enquanto dava autógrafos e, no teatro de outro local inominado, uma moça despenhou-se do primeiro balcão para a plateia, não ganhando para o susto. Em Coimbra, numa Queima das Fitas, a estudantada mais alarve fez-lhe a vida num calvário, obrigando-o a subir a uma mesa de um café para lhes entoar uma canção. Armados em contestatários – e, logo, avessos ao romantismo delicodoce de Calvário –, os estudantes coimbrões ameaçaram mesmo destruir-lhe um espectáculo, colocando-se nas primeiras filas munidos de tomates, ovos e o mais que houvesse. António subiu ao palco e, com a sua imensa classe, dominou a canalha hostil com o apoio da plateia que o queria ouvir, muito e tanto, mas, por causa deste incidente, esteve anos sem actuar na Lusa Atenas. No mais, e por toda a parte, rasgavam-lhe a camisa, desgrenhavam-lhe o cabelo, desmaiavam ao seu lado, assediavam-no na rua, à porta de casa, a ponto de ter de comparecer às estreias dos seus filmes acompanhado de batedores motorizados, como se fosse um chefe de Estado, que o era em boa medida. As cartas eram às centenas por dia, formou-se um clube de fãs e aquelas a quem Calvário não dava troco acusavam-no de ser “maricas” ou coisas piores. Segundo tem confessado, decidiu casar-se com o público – ou, se quisermos, com a música –, pois sabia que, se acaso tivesse escolhido noiva de carne e osso, as admiradoras não lhe perdoariam. Da plateia, gritavam-lhe “Não cases! Não cases!”, e ele fez-lhes a vontade – e não está arrependido.  

O 25 de Abril apanhou-o no Porto, na estreia de mais uma revista. Na véspera, deitara-se tarde, foi a mãe que lhe telefonou, a avisá-lo da revolução em Lisboa. Saiu logo para a rua, em festa, mas foi sol de pouca dura. Conotado com o anterior regime – ou, melhor dizendo, com um estilo musical típico desse regime –, esteve anos sem trabalho, regressou ao circuito dos cabarés e dos circos, sujeitando-se ao que lhe pagavam. Hoje, interpelado sobre essa travessia do deserto, diz que não foi o único a ser associado ao regime do Estado Novo (“Ao regime todos foram associados. Todas as pessoas que viveram nessa época estavam associadas, incluindo os militares que fizeram a revolução, se não tivessem servido o regime não teriam conseguido adquirir patentes. Podem não concordar, mas a verdade é que estiveram lá.”) e que “Foi complicado, deixei de ter trabalho, mas depois as coisas foram-se compondo. Foi uma fase, deixou-se de ouvir o que eu cantava. Estavam na moda as canções revolucionárias, que nada tinham a ver com aquilo que eu cantava. A minha maneira de cantar não tinha nada a ver com política, eu cantei sempre aquilo que nos outros países cantavam os artistas locais, como por exemplo Charles Aznavour, Gilbert Bécaud, Édith Piaf, Frank Sinatra. Alguma vez o Frank Sinatra cantou uma canção revolucionária? Nunca. Porque é que Portugal havia de ser diferente?” (Notícias ao Minuto, de 7/12/2018).  

Em 1978, regressou à revista, com Põe-te na Bicha, no ABC – onde conheceu um tremendo sucesso com a canção Mocidade, Mocidade, música de Nuno Nazareth Fernandes e letra de Carlos Coelho –, seguida de “Direita Volver”, no ano seguinte, A Invasão, no Trindade, também em 1979, Revista à Vista, no Odeon, esta já em 1992. Nos anos 1990, fez uma digressão exitosa por todo o país e, depois disso, tem publicado antologias dos seus triunfos, publicou uma autobiografia, e, em 2006, entrou no Circo das Celebridades, ao lado de vedetas da actualidade, como José Castelo Branco ou a Marta Cardoso do Big Brother. Ainda recentemente, concedeu uma entrevista de vida ao Observador, de 4/2/2024, onde passou em revista a infância África Minha, a ida ao Festival em Copenhaga, a loucura das multidões, os filmes em que participou, o tempo dos circos e dos cabarés, a fase do pós-revolução, que considera ter sido “de grande aprendizagem”, porque lhe deu “a possibilidade de conviver com pessoas de todos os níveis sociais.”  

Não se lhe conhecem inclinações clubísticas ou políticas, que pressentimos mais à direita, pese ter cantado um dia na Festa do Avante!, naquilo que faz questão de dizer ter sido apenas um compromisso profissional. Desconfia da Internet, uma “arma de dois gumes” que tem “permitido situações gravíssimas, encontros perigosos, raptos, pornografia infantil, exposição indevida da privacidade, montagens verdadeiramente criminosas, etc.” Em contraste, considera que a clonagem e a inseminação artificial não contrariam “as leis da Bíblia” e mostra-se adepto dos transplantes, como derradeiro gesto de solidariedade para com os outros, valor que diz cultivar, pese desprezar o que chama de “caridadezinha”. Adora animais, cães sobretudo (teve um cão-de-água, pelo menos, a Xanuca), deixou de fumar e beber aos 50, mas ainda aprecia um uísque de quando em quando. Confessa que, num passado remoto, chegou a fumar uns charros, tópico em que, diz, “não sou apologista, mas não critico quem o faça.” Lamenta o fim da Telescola e a desertificação do interior, mostrando-se saudoso da “escola do antigamente”, onde “não havia falta de respeito.” Por isso, advoga os correctivos corporais atempados: “um bom puxão de orelhas ou uma ponteirada, de vez em quando, nunca me fizeram mal.” Proclama-se defensor da vida, mas compreende o aborto como “mal necessário”, sendo ainda tolerante em matéria sexual, hétero e homo: “A homossexualidade poderá ser uma opção, uma maneira de estar na vida que remonta já aos primórdios da Humanidade. Cada um é como é, vive com quem quer.” Ainda assim, desdenha os “exageros públicos”, pois “não há necessidade de se exibir a opção de cada um. A privacidade é algo que considero importante e que se está a perder a vários níveis.” É católico, respeita o Papa e a Igreja, mas diz ter as suas “orações próprias” e confessa não ser “um praticante exemplar”, só frequentando a missa quando está para aí virado.    

António Calvário da Paz convive bem com a idade, dizendo não querer reformar-se: “acho que o ar que tenho e o facto de não parecer ter 85 anos se deve a nunca ter interrompido a minha carreira, mesmo nos momentos baixos.” Vive na Aroeira, num terreno que comprou há onze anos, antes deste frenesi de agora, ainda gosta de sair à noite, ouvir e música e conversar num bar. Actualmente, está à frente de três espectáculos em simultâneo (A Revista a Portugal, onde é cabeça de cartaz; Calvário: Uma Vida de Canções, um musical; e 100 Anos de Parque Mayer, ao lado de Rita Ribeiro), levanta-se diariamente às 7h30 da manhã e toma o pequeno-almoço na rua, onde continua a ser abordado, inclusive pelos mais jovens, que lhe pedem para tirar selfies. Ainda assim, e como todos nós, diz ter “momentos de solidão”, nos quais certamente já pensou naqueles belos versos de Mocidade, Mocidade, que dizem:  

Mocidade, mocidade 

Porque fugiste de mim 

Hoje vivo de saudade 

Como é triste perdermos a mocidade 

Sentirmos que é o princípio do fim 

Prova de vida (35) faz parte de uma série de perfis 

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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