Porventura o primeiro aviso que deve ser feito sobre Fleishman em Apuros é que aumenta os níveis de ansiedade. Não se entra no mundo de Toby Fleishman (Jesse Eisenberg), um médico recém-divorciado, sem sentir pelo menos uma ligeira tontura. Após um casamento de 15 anos, a vida deste homem está virada do avesso e o seu próprio quotidiano ganha uma configuração estranha entre aplicações de namoro, muito sexo e o retomar de amizades do tempo da faculdade. Pelo meio, tem os filhos adolescentes ao seu cuidado e um "problema" com a ex-mulher, Rachel (Claire Danes), que não lhe atende as chamadas nem responde às mensagens. Que tipo de mulher faz isto? Eis a pergunta que surge, em jeito de provocação astuta, nos primeiros episódios da série, adaptada do romance homónimo de Taffy Brodesser-Akner, jornalista freelancer do The New York Times, cujo espírito da letra levou a comparações com Philip Roth... numa versão feminista..Começamos então por conhecer Rachel pelos olhos do ex-marido, que se esfalfa para conseguir gerir o bom desempenho no hospital e satisfazer as altas expectativas dos filhos - integrados na vivência do Upper East Side -, enquanto recua nas memórias da relação, dando-nos a imagem possível dessa mulher ausente, uma empresária aguerrida que parece ter recuperado de uma depressão pós-parto apenas pelo estímulo do trabalho. Será esta a definitiva Rachel?.Numa conferência de imprensa virtual em que o DN participou, Claire Danes fez um resumo perfeito do que caracteriza esses primeiros episódios de Fleishman is in Trouble: "O que é particularmente fascinante e incomum nesta história é o modo como somos forçados a confrontar as formas pelas quais imediatamente simpatizamos com uma personagem masculina, especialmente quando está sob um tipo específico de pressão." É verdade: durante boa parte da série estamos, de forma acrítica, do lado dele e dos seus (justificados) preconceitos. "Até perto do final", continua Danes, "não percebemos quão distorcida é a nossa compreensão da história, porque ouvimos apenas um lado particular dela, um lado ao qual estamos mais abertos em geral. Achei isso muito subversivo e desafiador"..De facto, o que desassossega e intriga neste conto urbano tem sobretudo a ver com o jogo de perspetivas que é lançado, desde logo, por uma terceira personagem, Libby (Lizzy Caplan), a funcionar como a voz da autora, que faz a narração em off. Como Jesse Eisenberg sublinha: "O interessante, no que toca a mim e à Claire, é que as nossas personagens são vistas na perspetiva uma da outra. Então, quando a Claire é vista da minha perspetiva, parece ambiciosa ao extremo, vingativa, negligente, e quando a série muda de perspetiva e eu sou observado do ponto de vista dela, o espectador tem sentimentos semelhantes em relação a mim. Um dos desafios era modular o quão vilões e heroicos somos como atores, ou quão benignos e empáticos para criar as nossas personagens em função de se estar a ver a perspetiva da outra pessoa." Eis o processo emocional que se impõe em Fleishman em Apuros explicado por um ator amadurecido, longe da frieza de Mark Zuckerberg em A Rede Social e mais próximo do romantismo quebrado do protagonista de Café Society, de Woody Allen..Sobretudo, interessava abordar um tema que, apesar de tantas vezes representado, raras foram aquelas em que escapou a uma fórmula mais ou menos prescrita. Para além disso, porquê situar a ação em 2016? "A série passa-se no ano em que escrevi o livro", esclarece Taffy Brodesser-Akner. "Foi publicado em 2019 mas escrevi-o em 2016. Seria muito complicado incluir a pandemia numa história sobre um médico; implicava mudar imenso. Então, definimos 2016 - mas lamento dizer que não acho que muita coisa tenha mudado entre 2016 e agora, ou entre agora e 1916. Esta é uma questão permanente. A dinâmica de género e o casamento serão sempre um espaço propício para um romancista.".De resto, sente-se a marca temporal no ar: "O que é que se passava nesta cidade em 2016? Bem, havia muita ansiedade à volta das eleições. Havia pessoas a fazer campanha pela Hillary Clinton o tempo todo. Havia pessoas a conversar secretamente sobre o seu voto e como era louco que Donald Trump estivesse a concorrer à presidência. E essas coisas eram quase design de produção, mais do que enredo, porque é preciso dizer como estavam as coisas nessa altura", reforça a autora do livro e argumentista da série..Ao longo dos seus oito episódios, Fleishman em Apuros não desiste de nos baralhar quanto à "mensagem" que pretende transmitir. E isto acontece porque, na observação de uma certa dureza e ritmo nova-iorquinos, não se deixa dominar pelos elementos exteriores: o foco está sempre nas personagens e na sua verdade complexa, despida de ideias feitas e empacotadas. Para Lizzy Caplan, que interpreta a melhor amiga de Toby/Eisenberg e que é a voz da narradora, toda a série corresponde a "uma zona cinzenta, com nuances. Ninguém é totalmente bom ou mau. Não há heróis. Não há vilões. É muito interessante tentar contar uma história como esta nos dias de hoje, em que tudo é a preto e branco: é a tua equipa versus a minha equipa. Mesmo no cinema, há o herói de capa e o vilão sujo. Como se fosse a única maneira possível de processar as coisas enquanto sociedade - e não é assim que a vida é. Não é assim que as pessoas são"..Sem revelar demasiado, importa ir até ao fim para ver quem é, afinal, a Rachel de Claire Danes. O que se pode dizer é que a atriz, com estaleca para personagens psicologicamente feridas (basta citar Homeland), encontra na série "muitas ideias feministas maravilhosas". Acrescentamos nós: apresentadas de forma surpreendente..dnot@dn.pt