Alice Rohrwacher. “Foram os estrangeiros que começaram um processo de mudar o olhar sobre as coisas, em tudo na vida”
Falamos de homens sem memória, ou cheios dela, coros de mulheres, conceito de fábula, arqueologia, fantasmas e tesouros. Na imaginação de Alice Rohrwacher cabe um mundo. E o seu mundo tem-se pintado em película fotoquímica viva, vibrante. Ela é herdeira de uma luminosa essência italiana que a distingue dentro da produção cinematográfica contemporânea. Por isso, quando nos sentamos para conversar com a realizadora de O País das Maravilhas e Feliz Como Lázaro, temos a impressão de estar diante de um corpo mágico, alguém que escava a compreensão da realidade, com pausas breves para nos envolver no labor do seu raciocínio.
Falando em escavar, é esse o gesto recorrente no seu novo filme, A Quimera, que traz como protagonista um jovem arqueólogo inglês, Arthur - interpretado por Josh O’Connor, protagonista também do recente Challengers -, um ser errante em terras da Toscana que, nos Anos 1980, ajuda um bando de saqueadores de túmulos a encontrar relíquias etruscas para vender, enquanto, nesse processo de invasão de espaços fúnebres, vai nutrindo a sua própria quimera: Beniamina, a mulher amada e perdida.
Há ainda Isabella Rossellini no papel de uma velha matriarca aristocrata, e a brasileira Carol Duarte como sua empregada (personagem com o nome de Itália), que se converte num possível interesse amoroso de Arthur. Mas La Chimera não é apenas “sobre” estas figuras. É um filme que puxa fios mitológicos, que narra a aventura humana e o romantismo do que está para além da morte. Uma maravilha desalinhada, com mundos e fundos.
Na primeira cena de A Quimera, Arthur diz às raparigas no comboio que os seus rostos parecem saídos de “pinturas antigas”. E essa cena começa com o rosto da amada do protagonista... O que me fez lembrar que a Alice disse, sobre o seu filme anterior, Feliz Como Lázaro [2018], que a escolha do ator tinha sido motivada pelo rosto dele. Qual a importância do rosto para si?
O rosto é, em primeiro lugar, uma incrível e maravilhosa paisagem a descobrir. Mas é também o que oferecemos ao outro, a nossa abertura para o outro, embora haja civilizações que o cobrem... Mas como diz o filósofo [Emmanuel] Levinas, no rosto há sempre uma pergunta. Assim, sendo um filme que falava de arte antiga, de arqueologia - que, muitas vezes, nos chegou através dos rostos das estátuas e das pinturas -, quis que começasse por aí. Porque dentro dos rostos está também uma semelhança, uma continuidade. Aquilo que nos afeta num rosto, às vezes, é uma semelhança que não conseguimos explicar, que desconhecemos, algo de misterioso. Aqui, em particular, é a parte indefesa e frágil que se oferece, que está diante de nós. E, nesse início, passa-se do rosto de Beniamina [a amada] para o de Arthur, no qual a luz se move.
E daí passamos para os rostos das raparigas no comboio...
Nos quais ele encontra uma semelhança com a história do passado. História essa que está ainda na cabeça de uma estátua.
Estátua que, por sinal, é muito parecida com Beniamina.
Isso! O mais engraçado é que, de início, tentámos mesmo fazer uma estátua parecida com Beniamina, e ficou horrível. [Risos]. Acabei por dizer que mais valia fazer a estátua possível, cancelando a ideia de Beniamina. No final, depois de desenhada e feita, ficou de facto semelhante!
O coro, ou o sentido coral, parece-me outra manifestação forte do filme. Desde logo, o “coro” de mulheres no comboio, mas também as filhas de Flora [personagem de Isabella Rossellini] juntas na sala, etc. Será só impressão desta espetadora?
Inicialmente a minha ideia até era fazer um filme sem protagonista... De qualquer modo, este protagonista é tão inacessível, tão misterioso, que seria preciso criar o eco da pessoa. Ou seja, interessava-me o que ele deixa nos outros e o que os outros projetam nele. Mas, para mim, Arthur é um fantasma. Só à medida que ia escrevendo é que percebi que ele devia existir, mantendo-se a ideia dos coros que narram este homem, um homem que não chegamos a compreender, porque é muito fechado em si mesmo, na sua dor. Então, os coros funcionam como janelas sobre ele - e há coros de mulheres, de homens, com uma inspiração sempre de fábula, parábola, mito, onde o destino do herói reflete sempre o destino da multidão. Portanto, queria romper aqui a identificação com a personagem: ele não “existe”, seguimos o seu reflexo na coletividade.
E de onde vêm as figuras dos trovadores que no filme narram, através do canto, a miséria humana?
Os trovadores são também uma maneira de as personagens se verem “de fora”. Repare que, sempre que os trovadores entram no filme e começam a cantar, Arthur vai-se embora. Ele não pode ver-se de outra perspetiva. Lembro-me de dizer ao Josh, da primeira vez que filmámos uma dessas cenas: “Tens de sair. Tu sabes porquê: não podes ouvir a história da tua morte. És um fantasma.”[Risos]. Ele levanta-se, muito triste, e sai... Esta narração de canto existia muito em Itália, e é algo que estudei bastante. Eram personagens que andavam nas ruas - sobretudo antes da chegada da televisão - e cantavam crónicas ou contos inventados. Achei que trazê-las para dentro d’A Quimera era uma forma de contar o moral do filme; esta é uma história que conta o justo e o injusto. Não podia ser eu a fazê-lo, porque sou o olhar. E, assim, tenho a felicidade de mostrar outras vias no cinema, que não apenas o drama personificado no protagonista. O cinema não é só esse tipo de viagem: é também escuta, contemplação e compaixão por alguém que é diferente de mim.
Os traficantes de arte, ou ladrões de túmulos, serão igualmente personagens que conhece bem...
Eu cresci numa região onde, nos Anos 80, havia um provérbio que dizia: “Os mortos dão a vida”. Que é como quem diz: dão dinheiro. E nessa altura havia uma febre na população, a febre do tesouro, que era mesmo como uma doença ou uma droga! Todas as noites, estes grupos de homens - sobretudo homens, os tombaroli - andavam a cavar à procura dos tesouros etruscos, para vender. Isso pôs-me a pensar por que razão este tráfico não existiu durante 3000 anos. Ninguém tocou em nada durante esse período e, de repente, todos pegam em tudo! Algo de essencial terá mudado no coração do homem, não? Aquilo que dantes eram objetos “perigosos” - porque permaneciam invisíveis e acreditava-se que estavam contaminados pelos espíritos, pelas almas - deixaram de o ser. Alguém achou que era uma estupidez acreditar nisso... Uma geração, que queria ser diferente, mudou a história. Estávamos a entrar no período materialista, em que já não há noções de sacro ou profano, apenas de mercado: tudo se compra e vende. No fundo, estes tombaroli, considerados bandidos, eram só engrenagens de um sistema de procura e oferta, como ratinhos na roda que é a grande máquina. O tombarolo é filho da sua época, eis o que me interessava dar conta. Por isso, há aqui a canção que se chama Povere Tombaroli: eles não são heróis da noite, são pobres homens. Basta olhar para o mundo de hoje, em que as florestas estão cheias de lixo, as centrais a carbono são construídas sobre santuários e o mar está cheio de descargas da indústria... Quem são os tombaroli?
Filmou em diferentes formatos, às vezes até com a imagem invertida e outras técnicas. O que é que esteve por trás desta opção?
Tem a ver com o facto de ser um filme sobre arqueologia. Muitas vezes falamos da história do cinema como uma história de autores, mas trata-se também da história de uma tecnologia material. O cinema só foi possível porque houve uma invenção técnica que se desenvolveu. E a forma da máquina de filmar permitiu diferentes tipos de cinema; mudou o cinema. Quando pensei o filme com a Hélène Louvart, na altura de escolher a película - porque sempre filmámos em película -, não consegui escolher... Então surgiu a ideia da arqueologia, que se expressa bem nos formatos (16mm, 35mm), porque acho que é importante deixar o testemunho de uma matéria, agora que vivemos na era do imaterial.
Imagina-se a trocar a película pelo digital?
A película é o suporte e o método de que mais gosto, porque fazer um filme assim significa fazê-lo durante a rodagem. Quando se filma em digital, muita coisa é enviada para um processo posterior e solitário. Por mim, gosto de trabalhar respeitando a imagem que foi criada em conjunto. Mais uma vez, é um processo coral. Depois, a imagem é matéria viva e assenta numa questão de destino: talvez tenhas estado a trabalhar muito nela e a imagem não exista, a luz não entrou...
Porquê a escolha do “estrangeiro” Josh O’Connor?
Sempre tive em mente que o ator deveria ser estrangeiro, porque sem esse elemento não teria conseguido mudar o ponto de vista sobre as ruínas. Quer dizer, foram os estrangeiros que começaram um processo de mudar o olhar sobre as coisas, em tudo na vida. E, neste caso, foram os ingleses, os alemães, os estrangeiros do norte que vieram a Itália durante o Grand Tour e observaram as ruínas pelo seu valor - os habitantes não tinham essa consciência, acostumados que estavam a elas... Mas voltando ao protagonista, inicialmente quis que fosse mais velho, porque achei que ninguém ia acreditar num jovem despojado de todas as esperanças. Mas um dia recebi uma carta do Josh O’Connor, enviada para a casa dos meus pais, a pedir para nos conhecermos (por que não?), e conhecemo-nos e falámos. Quando voltei para casa, pus-me a pensar e achei que era o destino! [Risos]. Primeiro, porque é uma pessoa incrível, um ator incrível, e também fora do tempo... Ele não tem uma idade.
Houve um filme que me passou pela cabeça várias vezes enquanto via o seu: Viagem em Itália [Roberto Rossellini, 1954]. Temos Ingrid Bergman, estrangeira, a percorrer catacumbas e museus, numa relação constante com os elementos fúnebres (à semelhança de Arthur). E estamos a falar da mãe de Isabella Rossellini, num filme realizado pelo pai... Já para não dizer que n’A Quimera há uma personagem chamada Itália! São muitas ligações, e gostava de saber se pensou nele.
Esse é um filme que amo imenso, como qualquer filme de Rossellini. E é curioso que tenhamos começado esta conversa com a ideia do rosto, porque o que acabou de dizer é um pouco como aquele efeito de termos visto alguém que nos parecia outra pessoa: dá-me muita satisfação saber que este filme a levou para Viagem em Itália, porque penso que a possibilidade de haver uma memória maior do que a nossa, uma memória coletiva, que vem dos filmes que nos nutriram, é fascinante. Sem dúvida, a memória de Viagem em Itália nutriu-me, sem que eu tenha feito uma referência direta, embora seja tão próximo... Já agora, conto-lhe que quando a Isabella [Rossellini] chegou ao set, fomos fazer uma visita a uma necrópole, e na bilheteira havia uma foto (que ela não conhecia porque não está no filme; é da repérage) da mãe e do pai dela dentro de um túmulo etrusco! Foi muito emocionante. E também... os filmes de Rossellini funcionam como rostos que contêm uma pergunta. É belo que essa pergunta tenha eco no tempo.
A Alice fez Erasmus em Lisboa e realizou cá um filme intitulado Vila Morena [2005], como a canção de Zeca Afonso, Grândola, Vila Morena, tão emblemática do nosso 25 de Abril, que este ano assinalou o cinquentenário. Quer contar-nos um bocadinho dessa experiência?
Sim, vim para Erasmus [Grego Clássico] e depois encontrei a Luciana Fina [radicada em Lisboa], realizadora que admiro muito e que me deu a oportunidade de ficar mais um ano a trabalhar com ela na montagem de dois projetos, em que aprendi imenso. Depois participei num Curso de Cinema da Videoteca Municipal de Lisboa, e, aí, o meu projeto, juntamente com a Alexandra Loureiro, foi sobre o Tejo Bar, onde eu andava todos os dias - um lugar que mudou, como tantas coisas em Lisboa -, e pensámos no título Vila Morena, não só porque uma personagem no filme diz que vai abrir um bar na floresta, que se chamará assim, mas também porque há a ideia de que a Revolução nasce de um canto coral. Aliás, este bar era frequentado, sobretudo, por cabo-verdianos, brasileiros, italianos... havia muitas pessoas estrangeiras. Narrava-se ali a identidade mista e preciosa de uma cidade, e mesmo de uma utopia! O que posso dizer é que, desde o meu primeiro filme, a questão do coro é central: interessa-me filmar a pessoa que somos quando estamos juntos.