Vamos encontrá-lo numa sala pacata e elegante, banhada pela luz indecisa de um dia chuvoso em Sintra. Aleksandr Sokurov toma uma aspirina para afastar as nuvens de uma ligeira dor de cabeça, mas sorri e cumprimenta com a máxima cordialidade, na língua materna. Sendo um dos convidados de peso da 16.ª edição do LEFFEST, certame que termina este domingo, o realizador d"A Arca Russa mantém a postura de alguém importante, mas sem um pingo de arrogância. O ponto de partida da nossa conversa é Fairytale, o seu novo filme, que no festival encheu a sala do Nimas e cuja estreia já está marcada para janeiro, com o subtítulo português As Sombras do Velho Mundo. A obra em causa e o momento em que se dá a conhecer por cá tornam também inevitável a abordagem da própria condição de um cineasta russo no atual panorama..Fairytale, por sua vez, é tudo menos um filme possível de trocar em miúdos, sendo composto por peixe graúdo: Estaline, Hitler, Mussolini e Churchill entram, não num bar, mas no Purgatório. A partir dessa premissa, Sokurov imaginou-os a divagar numa paisagem com ares de Divina Comédia. Também Jesus Cristo e Napoleão Bonaparte dão aqui um ar da sua graça, mas são os ditadores e o estadista britânico que protagonizam a fantasia altamente documentada que, ao contrário do que foi divulgado pela maioria dos media internacionais, não recorreu ao uso da técnica deepfake... Nesta única entrevista dada à imprensa escrita portuguesa, no contexto do festival, Sokurov mostra-se um zeloso artesão do cinema contemporâneo, bem consciente do que se passa à sua volta..Porquê juntar estes ditadores e Churchill numa fantasia pós-morte, em vez de criar uma situação com as personagens "vivas"? Em primeiro lugar, porque já o fiz individualmente. Isto é, fiz uma tetralogia [Moloch, Taurus, O Sol, Fausto] onde alguns deles se encontram vivos. Além disso, muitos realizadores mostraram-nos vivos, portanto este é outro passo. Em segundo lugar, criei, como acabou de dizer, uma fantasia! Um género distinto que me permite inventar temas fantasiosos. Não se trata de um documentário nem de política ativa, é uma obra de arte..Acrescentaria mais algum líder a este conjunto de personagens? A situação do filme só é concebível, a meu ver, com estas personagens. Não fazia falta mais ninguém no quadro. Estudei as suas vidas durante muitos anos, posso dizer que conheço bastante bem cada um, quase numa perspetiva de "como se os tivesse conhecido pessoalmente". Isto também porque tirei uma licenciatura em História e esses conhecimentos são parte da minha profissão: eu preciso de conhecer estes homens. Se fosse professor de História, teria muitas coisas interessantes para contar aos meus alunos sobre a vida de cada um deles....Num cenário semelhante, quem gostaria de encontrar às portas do céu? Sou demasiado ruim para chegar às portas do céu! (risos) Quer dizer, os anjinhos poderiam empenhar-se em resolver-me os problemas, mas, ainda assim, quem sou eu para estar diante desses portões, por aquilo que eles representam. Os deuses já têm de lidar com estes homens... O que será de mim? Ícaro tentou voar demasiado alto e veja-se o que lhe aconteceu..Citaçãocitacao"A guerra era tão inevitável no século XX como é no século XXI. Isto porque ainda não compreendemos que as questões políticas não se resolvem usando as armas".Falou-se muito que teria usado a técnica deepfake neste filme, mas consta-me que isso não é verdade... A técnica que usei exclui qualquer inteligência artificial ou deepfake, porque a mim interessa-me fazer tudo com as minhas próprias mãos, tal como um ourives. Não gosto de fazer nada com a ajuda do computador. Para conceber um objeto de arte é preciso utilizar as ferramentas sérias, que neste caso são os materiais de arquivo, vídeos e imagens verdadeiras..Para reunir esses materiais terá sido um longo processo... Sem dúvida. Foi um longo e difícil processo. Mas o filme está feito, e será conservado por muitos e muitos anos como um exemplo do trabalho e do talento também dos meus colaboradores..Todos os diálogos que estão no filme são baseados em palavras ditas ou escritas por estas figuras? Há muitos fonogramas, muitos escritos, enfim, provas de que todas as palavras usadas no filme foram pronunciadas pelos protagonistas. E também existem vários documentos que nos permitem chegar a essa informação. Por exemplo, sabemos que a secretária de Hitler, que esteve com ele todos os dias, escreveu cada palavra que saía da sua boca durante os jantares, os pequenos-almoços, o que fosse... Temos pensamentos de Estaline documentados de uma forma particularmente rigorosa. Com tudo o que está ao alcance, é realmente possível saber ainda mais sobre estas personagens do que aquilo que hoje conhecemos..Citaçãocitacao"Até o grande Lev Tolstoi sofreu nas suas relações com os Estados Unidos - era um grande admirador da literatura e filosofia norte-americanas, mas nunca visitou o país. Da minha parte, no período soviético, todos os filmes que fiz foram banidos".A certa altura, vemos um soldado morto a dizer a Hitler que ainda se irá erguer só para o matar de vez. Os soldados do passado são os mesmos do presente? Acha que se sentem da mesma forma? Tenho a certeza de que sim. O soldado que está a morrer no campo de batalha não tem palavras de gratidão... porque está a morrer. Os soldados são homens obrigados a morrer. Mas em nome de quê? Muitas vezes, eles chegam demasiado tarde a essa conclusão. Pensam que vão sobreviver, que a bala apenas passará perto, mas a bala acaba por ir na sua direção. E isto não se aplica exclusivamente aos soldados alemães no filme, como é óbvio. Qualquer soldado por este mundo fora sente o mesmo..Enquanto estudioso de História, como é que olha para a guerra? Sei apenas uma coisa: a guerra era tão inevitável no século XX como é no século XXI. Isto porque ainda não compreendemos que as questões políticas não se resolvem usando as armas. As questões políticas pedem meios políticos, mas simplesmente os políticos parecem não saber como fazê-lo. São maus profissionais, fazem mal o seu trabalho - todos e cada um deles, sejam russos, americanos, franceses, alemães... Não sabem resolver os problemas sem falar de armas. A guerra será evitável, sim, quando estes homens conseguirem ser mais inteligentes. Ou quando formos capazes de eleger os que saberão fazê-lo..Quer comentar a guerra do momento? É um grande desastre. Geralmente, numa guerra um dos lados sai vencedor. Mas, do meu ponto de vista, esta guerra não terá um vencedor; isso não passará de um anúncio. Vão todos perder, incluindo quem a fez acontecer..Enquanto realizador russo, sente que a sua nacionalidade, nestes dias, contém algo de "ameaça" no exterior e internamente? Alguém que viva na Rússia está sempre numa posição difícil. Até o grande Lev Tolstoi sofreu nas suas relações com os Estados Unidos - era um grande admirador da literatura e filosofia norte-americanas mas nunca visitou o país. Da minha parte, no período soviético, todos os filmes que fiz foram banidos, documentários e ficção. Ainda hoje há filmes meus que estão proibidos na Rússia. Mesmo o destino deste Fairytale é difícil... Mas fazer filmes é a minha profissão, a minha vida, e, de certa maneira, o meu dever. O que tiver de me acontecer pessoalmente, só Deus sabe. Ainda em relação a Fairytale: apesar de eu ser um homem russo, não se encontra nenhuma guerra russa no meu filme..É possível filmar na Rússia nesta altura? Claro! Para isso acontecer, tens de ser fiel, respeitoso e tens de submeter os temas do filme ao controlo do Estado... Assim, és bem-vindo! Mas isso é muito complicado para os jovens realizadores. Para mim, enquanto realizador mais velho, resistir é normal, agora para as novas gerações que não podem resistir é que se torna um problema. Estes jovens têm o seu próprio ponto de vista, que é absolutamente orgânico. Não têm tempo para ser espertos e leais... Mas, olhando para a nova geração de realizadores na Europa, não vejo que eles tirem particular proveito das suas liberdades constitucionais. Deveria haver um interesse europeu em filmes de maior escala ou baseados em problemáticas de maior escala. Os Estados Unidos tornaram-se o grande capital desse cinema..Por falar em jovens, e regressando a Fairytale, como é que os jovens russos olham para Estaline? Há diferentes perceções. A maior parte dos jovens não sabe muito sobre ele, alguns não sabem mesmo nada, depende do nível de cultura. Mas se puséssemos dois grupos mais velhos frente a frente, ambos seriam neutros: um lado não quer saber, o outro não quer aceitar que ele está associado a um terror em massa, o estalinismo. Mas entre os jovens encontramos diferentes opiniões, podemos mesmo encontrar nazis, e até o exemplo de Estaline como a representação de um Estado forte..Como é que se sente aqui em Lisboa, a cidade onde filmou Pai e Filho [2003]? Quando surgiu a ideia de Pai e Filho, eu disse ao meu produtor que o único lugar onde gostava de o filmar era em Lisboa. Adoro esta cidade! É muito distinta de outras cidades do mundo. E mesmo Portugal, o país, as pessoas, a cultura, são absolutamente únicos. Sublinho: absolutamente únicos..dnot@dn.pt