“As minhas únicas companhias, além dos meus avós, da minha mãe e de um cachorrinho de nome Trixie, eram as personagens dos filmes que ia ver com a minha mãe, às quais depois dava vida. Terei sido o único menino de 5 anos a quem levaram a ver Farrapo Humano [1945]. Senti-me bastante impressionado com o desempenho de Ray Milland no papel de alguém completamente dominado pelo álcool, que lhe valeu um Óscar.” É logo às primeiras páginas de Sonny Boy, o livro de memórias de Alfredo James Pacino agora lançado em Portugal pela Presença (tradução de João Cardoso e Pedro Elói Duarte), que ficamos a conhecer as bases e os bons germes criativos do ator que viria a brilhar, em inícios e meados dos anos 70, n’O Padrinho, Serpico e Um Dia de Cão. Continua assim: “Não poderia esquecer a cena em que [Milland] está sóbrio, procurando freneticamente a bebida que escondera quando estava embriagado, embora não consiga lembrar-se onde. Eu tentava interpretar esta cena fingindo revirar um apartamento invisível, vasculhando armários, gavetas e cestos que ninguém via. Tornei-me tão bom nestas singelas representações que comecei a fazê-las a pedido dos meus familiares.” .Quase todas as grandes histórias de sucesso em Hollywood partem de pormenores assim, um determinado contexto de infância e/ou uma determinada experiência cinematográfica que desencadeou qualquer coisa na futura estrela. Saber que Farrapo Humano, de Billy Wilder, se impôs a uma criança de 5 anos como uma inspiração performativa não é um pormenor sem importância: o que pensaria o pequeno Al diante da imagem crua de um alcoólico crónico? Talvez que era só um corpo possuído por gestos descoordenados, material perfeito de pantomima para fazer rir os adultos. Mal sabia ele (ainda) da dimensão trágica contida naquela interpretação de Milland. .O seu "ar de rua" em Um Dia de Cão (1975)..Curiosamente, o consumo de álcool tornou-se uma constante na vida do Pacino adulto – apesar de nunca ter interferido com o trabalho de ator; esse era o seu trunfo de profissionalismo –, ajudando este outrora menino do South Bronx a turvar a melancolia que se alojava nas células do corpo quando não estava a representar em cima de um palco ou à frente de uma câmara. .E por falar em South Bronx, as suas ruas constituem-se a matéria densa do início deste livro intitulado com a alcunha carinhosa pela qual Pacino era tratado pela mãe, Rose Gerardi, a partir de uma canção de Al Jolson. Com efeito, o nosso Sonny Boy é filho dessa frágil mãe solteira, tocada pela tristeza, a quem deve tudo, mas também se assume descendente da aventura infinita na Nova Iorque operária onde cresceu, acompanhado de três amigos dados a tropelias. .“Fazíamos tudo o que podíamos para nos divertir. Passávamos horas a fio deitados de barriga para baixo, à pesca nas grelhas do esgoto nos limites dos nossos quarteirões, esperançados em detetar entre a sujidade do fundo algo brilhante que pudesse ser uma moeda perdida”; “Vivíamos e respirávamos os antigos jogos de rua como o pontapé na lata, o stickball e o ringolevio”; “Estávamos sempre a perseguir e a ser perseguidos. (...) Mas todos conhecíamos bem o agente do nosso bairro; caminhava ao nosso lado, deitava-nos um olho e estimulava-nos a diversão”, conta o ator de 84 anos, que diz adorar olhar para trás e transmitir as sensações de ter vivido numa certa comunidade, num tempo diferente. “Quando tento explicar aos jovens como foi crescer no South Bronx, parece que estou a descrever-lhes a Londres de Oliver Twist, Grover’s Corners de Thornton Wilder ou aquela pequena cidade do Texas de A Última Sessão.” E que maravilha é. .O teatro e O Padrinho.Há um prazer literário que faz virar as páginas de Sonny Boy. Escritas na primeira pessoa, com um misto de lhaneza, humor e gosto pela narração (qualidades com certeza polidas pelo jornalista Dave Itzkoff, do The New York Times, creditado nos agradecimentos), estas memórias vêm envolvidas de um desejo de responder divertidamente à pergunta “o que foi isto que me aconteceu”? Pacino sabe que é um homem de sorte vindo de um meio onde, mais do que viver, se sobrevivia – aquela história de dever tudo à mãe (o pai era uma figura ausente) atribui-se ao facto de ela o ter salvo da delinquência através de uma vigilância mínima, e de proibições cirúrgicas dentro da grande liberdade das brincadeiras de rua, que os seus melhores amigos não tiveram. Consequência: morreram por culpa das drogas. .Sonny Boy - MemóriasAl PacinoEditorial Presença320 páginas.A esse destino escapou então aquele que fez de tudo um pouco, em termos de trabalhos de limpeza e manutenção para subsistir, até chegar ao ponto de viragem de um certo convite de Francis Ford Coppola. Antes disso, foi por incentivo de uma professora de liceu, convencida da promessa óbvia do seu talento, que se entusiasmou com o teatro, e depois de aos 15 anos assistir a uma peça de Tchekhov que o encantou, A Gaivota, nunca mais quis largar os textos clássicos. As ruas de Manhattan que o digam: “Ali andava eu, a caminhar pela cidade à noite, a declamar os meus monólogos de O’Neill e de Shakespeare nas ruas escuras e silenciosas, normalmente nas traseiras dos armazéns. Nova Iorque oferecia-me noites frias e ruas vazias para praticar. O meu público eram as estrelas, os edifícios e os carros estacionados nas proximidades. Se alguém passasse, julgaria que eu era louco; se os serviços de recolha de animais passassem, seria levado como um cão vadio.” .Este excerto dá uma ideia muito clara da bela contradição de Pacino, que, por sinal, será a essência da sua grandeza: eis um ator que mistura a sabedoria noturna, desprotegida e rugosa, com a alma ampla e a virtude dos textos antigos. Por aqui se fez o seu caminho para o cinema, que, já se vê, é indissociável da experiência do teatro (estreou-se com a peça The Indian Wants the Bronx). Aliás, foi sempre aos palcos que regressou quando o cinema não lhe estava a dar o alimento necessário para o espírito. .Mas, um dia, lá chegou a chamada de Coppola a convidá-lo para ser Michael Corleone numa adaptação sua de O Padrinho, de Mario Puzo... Ele, um ator que na altura, no grande ecrã, só fizera de jovem dependente de heroína (Pânico em Needle Park, 1971) e não encaixava na definição de ator da Paramount. Os estúdios queriam “Robert Redford. Queriam o Warren Beatty ou o Ryan O’Neal”. Resumindo, foi por Coppola o querer especificamente que a escolha se manteve e avançou, apesar de não ter corrido lá muito bem nos primeiros tempos. .Algumas das melhores passagens de Sonny Boy contam, com imensa graça, a estranheza dessa rodagem. Por exemplo, o almoço em que Al se sentou ao lado de Marlon Brando numa cama de hospital a comer frango todo lambuzado, ou quando, a filmar a cena do casamento com Apollonia, o ator não tinha como responder positivamente a nenhum dos pedidos de Coppola, desde falar italiano a conduzir um carro, passando por dançar a valsa. “Olho agora para aquela cena com afeto. O Francis era um realizador a dirigir um filme, e eu era um ator que não conseguia fazer a maior parte do que me pedia. Mas acabei por dançar naquele casamento, simular que falava em italiano com quem lá estava, desci a ribanceira, meti-me no carro e conduzi aquela coisa pouco mais de um metro. É por isso que todos adoramos filmes. Tudo é possível.” .Óscares, papéis recusados e imortalidade.Scarface (1983), o favorito..Depois de O Padrinho tudo mudou. Ainda voltou a trabalhar com o realizador de Pânico em Needle Park, Jerry Schatzberg, em O Espantalho (1973), mas acabou por ser sob a direção de Sidney Lumet que cimentou o estatuto de ator de Óscar, fazendo com ele Serpico (1973) e Um Dia de Cão (1975), com O Padrinho: Parte II (1974) pelo meio. Claro, foi nomeado em todos, e repetiu a dose o dobro das vezes, só numa delas levando a estatueta consigo (Perfume de Mulher, 1992); embora não tenha tido o reconhecimento que esperava pelo seu filme favorito da carreira: Scarface – A Força do Poder (1983), de Brian De Palma. Nestas páginas fala-se de outros mal-entendidos de Hollywood, mas a reputação de ator difícil nas rodagens é o mito mais explanado. .Seja como for, ser ator é tudo para Al Pacino. Foi o que lhe “aconteceu”, e se há vários parágrafos que pontuam a sua reflexão sobre isso, também se encontram confissões absurdas, como ter recusado trabalhar com os mestres Ingmar Bergman e Federico Fellini só porque não se identificava com o papel... É mais compreensível que tenha respondido com um não ao convite para ser Han Solo em A Guerra das Estrelas (até tem alguma piada imaginar esse universo alternativo em que Harrison Ford não seria o Han Solo). .Sempre empenhado em valorizar as impressões vivas da memória, e por entre palavras amáveis dirigidas aos amigos mais próximos, incluindo Robert De Niro, Martin Sheen e Diane Keaton – com quem chegou a ter um caso amoroso, numa vida mais dada à solidão do que a longos relacionamentos –, Al é hoje um homem apaixonado pela sua descendência, mais ou menos reconciliado com a fama e tranquilo nos seus pensamentos sobre a imortalidade. “Tenho uma fantasia recorrente de acordar dentro do meu caixão. Não é um sonho, é uma fantasia. Sou capaz de pensar nisso sempre que quero – mas não aconselho”.