Ainda se fazem comédias policiais
No cinema, foi uma personagem da década de 1980: agora, Fletch, jornalista & detetive privado, reaparece numa interpretação de Jon Hamm que nos leva a recordar as virtudes de todo um património clássico.
É, no mínimo, desconcertante encontrar Jon Hamm num filme como Confessa, Fletch, realizado por Greg Mottola a partir de um romance de Gregory Mcdonald (Confess, Fletch, publicado em 1976). Porquê? Porque nos habituámos a vê-lo "apenas" como a imaculada encarnação da personagem fria e impenetrável de Don Draper na série Mad Men (2007-2015), não neste território atribulado e desconcertante de comédia policial.
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Competente e sofisticada, a composição de Hamm garante o misto de sobriedade e burlesco que a personagem de Fletch exige. Ele é uma espécie de insólito cruzamento entre o jornalista freelance e o detetive privado, empenhado em resolver o mistério dos preciosos quadros roubados (incluindo um Picasso que vale, no mínimo, 20 milhões de dólares!) ao pai da sua namorada italiana. Numa caracterização esquemática, porventura sugestiva, diríamos que se trata de uma intriga labiríntica, pontuada por muitas pistas e outras tantas ambiguidades, à maneira de um romance de Raymond Chandler, mas tratada com o gosto paródico e a irrisão de um sketch de Saturday Night Live...
O caráter bizarro da personagem de Fletch (de seu nome Irwin M. Fletcher), algures entre a nostalgia do cinema noir e o revisionismo pós-moderno, já seduzira Hollywood na década de 80, gerando Fletch/Assassínio por Encomenda (1985) e Fletch, o Herdeiro (1989), ambos com Chevy Chase sob a direção de Michael Ritchie. Tal como agora, o resultado envolvia qualquer coisa de inclassificável e, nessa medida, sedutor: estamos perante um universo "alternativo" alheio aos modelos dominantes da produção de Hollywood. Nas páginas da revista Rolling Stone (26 set.), num reconhecimento agridoce da solidão artística de Confessa, Fletch, David Fear escrevia mesmo que "este pode ser o derradeiro filme do seu género."
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Se quisermos sublinhar o enraizamento de Confessa, Fletch num tempo mais ou menos remoto de Hollywood, podemos acrescentar que a ligeireza elegante que o filme procura provém da arte narrativa de mestres como Billy Wilder, em particular em comédias (mais ou menos) policiais como Beija-me, Idiota (1964), Como Ganhar um Milhão (1966) ou Os Amigos da Onça (1981).
Apesar da sua competência profissional, o trabalho de Greg Mottola é obviamente menor face a tais referências. Seja como for, creio que importa não nos ficarmos pela facilidade de uma mera "hierarquia" de valores, antes destacando o facto de Confessa, Fletch valorizar duas componentes viscerais do património narrativo de Hollywood. A primeira dessas componentes, tão banalizada pela filosofia pueril dos super-heróis (e também pela vocação monossilábica de alguns deles) é o valor essencial dos diálogos: encontramos aqui um gosto pela exuberância das palavras que são, afinal, momentos decisivos da ação. A segunda tem a ver com a importância primordial dos intérpretes: afinal de contas, não é todos dias que encontramos um leque de secundários que inclui Kyle MacLachlan, John Slattery (também de Mad Men), ou Marcia Gay Harden.

dnot@dn.pt
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