Olfa Hamrouni e as duas filhas mais novas.
Olfa Hamrouni e as duas filhas mais novas.

A voz das mulheres

Nomeado para o Óscar de Melhor Documentário, Quatro Filhas, de Kaouther Ben Hania, é um caloroso lamento feminino, de uma mãe e da sua descendência, a lidar com os fantasmas do jihadismo. Pérola de ternura, bom humor e catarse vinda da Tunísia.
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“Pelo que percebi, sou como a personagem da Rose no Titanic. Ela conta a sua história e depois os atores interpretam essa história”. As primeiras palavras de Olfa Hamrouni, acompanhadas por uma expressão leve no rosto, dão conta do pequeno prazer que lhe atravessa o espírito ao comparar-se à protagonista do grande sucesso de James Cameron. Esta mãe tunisina ri com vontade, enquanto repete: “Portanto, sou a Rose, mas no filme Quatro Filhas!” O sorriso desvanece-se, porém, quando a realizadora atrás da câmara lhe explica que não é exatamente disso que se trata: no filme em causa, as suas duas filhas mais novas vão fazer delas próprias, haverá, sim, duas atrizes a preencherem a ausência das outras mais velhas, e uma terceira atriz a substituir a própria Olfa nas cenas psicologicamente mais exigentes. O que é que se passa aqui? 

Quatro Filhas é um documentário – desde logo, foi isso que entendeu a Academia de Hollywood ao nomeá-lo para o Óscar nessa categoria –, mas não deixa de ter um artifício que o liberta da estrita lógica documental. Docudrama? Metaficção? Enfim, um híbrido. 

No início, a voz em off da realizadora Kaouther Ben Hania informa que se vai contar a história das filhas de Olfa, as que ainda estão com ela e as que fugiram de casa, convertidas ao jihadismo. Mas não será bem assim: a narrativa das filhas só existe através da narrativa da mãe. Apetece dizer que é da sua presença calorosa, e do seu sorriso a imaginar-se uma Rose do cinema, que nasce o filme. 

Vejamos, há um contexto por trás da importância de se retratar a vida de Olfa Hamrouni. Em 2016, esta mulher veio a público expor a já referida perda: duas das suas filhas, Ghofrane e Rahma, na altura adolescentes, abandonaram a família para se tornarem combatentes e noivas do Estado Islâmico, na Líbia. Com essa perda veio uma revolta pessoal: recusando-se a baixar a cabeça e a fazer silêncio, como a maioria das mães cobertas de vergonha pela mesma situação, Olfa resolveu apontar o dedo à inércia das autoridades tunisinas e assumiu, desde então, o luto pelo desaparecimento das jovens. 

Terapia de grupo

O luto é, de resto, bem visível em Quatro Filhas, com Olfa e as suas meninas, que já não são meninas, vestidas (quase) sempre de negro, seja o lenço enrolado à volta da cabeça, o hijab ou as roupas seculares. Mas o filme da conterrânea Ben Hania não quer nada com a típica entrega à angústia pesada, mesmo que se permita a breves excertos de entrevistas com discursos chorosos. Na essência, a ideia aqui é “dançar” entre as conversas de mulheres e a rodagem das cenas que recuperam, pela dramatização, as memórias desta família – autênticas reconstituições de momentos-chave do passado que infundem uma espécie de terapia feminina, entre lágrimas e gargalhadas. É particularmente genial assistir ao controlo de Olfa sobre a veracidade das cenas que a implicam, com um entusiasmo, vigor e tagarelice contagiantes... O mais interessante da “personagem” desta mulher divorciada passa, aliás, por essa postura de domínio da situação, que sinaliza algo de um perfil vívido e cheio de contradições: se ela representa, por um lado, a mais genuína senhora de si, que não se vergou à sociedade patriarcal, a forma como reage ao florescer da sexualidade das filhas, e a violência com que tentou segurar a suposta rebeldia das ausentes, dão-lhe diversas camadas de magnetismo, nem sempre pacíficas. 

Ben Hania, que já tinha trabalhado um certo tipo de desconforto no anterior, e menos conseguido, O Homem que Vendeu a Sua Pele (drama sobre um refugiado sírio feito mercadoria em nome da arte), desta vez atingiu uma nota robusta de compreensão do mundo das mulheres, sem aqueles paninhos quentes da “feminilidade” que minimizam os efeitos no espectador. É por serem todas elas – Olfa, as filhas e as atrizes – personagens inteiras e francas, abertas às mágoas mais profundas, mas também à ironia mais relaxada, que Quatro Filhas escapa ao mero exercício de catarse glamorosa diante da câmara. 

E se uso a palavra “glamour” é porque, de facto, Kaouther Ben Hania sabe tirar partido da beleza fotográfica deste clã improvisado, filmando-o pela linha da interação mais luminosa, mesmo quando combativa, captando a frescura do mulherio que convive com o trauma, os momentos concretos em que os sentimentos se revelam numa película de cumplicidade, e a dimensão universal que não se anula perante as forças opressivas de uma cultura. A performance e um princípio de verdade emocional combinam-se assim num conjunto de quadros humanos, mais ou menos encenados, que atestam o fascínio da irmandade das mulheres, numa linguagem específica que cresce através da partilha.  

Contar a história de Olfa, que se imagina como a Rose do Titanic, será então reviver a memória e a interpretação da maternidade num processo apaixonado, que não se sujeita à narrativa ordenada. O segredo está na corrente de ar que atravessa todo o filme e não deixa acumular pó sobre o drama.  

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