A violência não existe
Em 2016, Jan P. Matuszynski foi duplamente distinguido no LEFFEST com os prémios de melhor filme e revelação para melhor realizador. Importa sublinhar: um destaque bem merecido. Essa primeira longa-metragem, The Last Family, fascinante retrato da família do pintor polaco Zdzislaw Beksinski (1929-2005), fazia saltar à vista o nervo de um jovem cineasta capaz de combinar a maior agitação com a mais quieta melancolia, através do tremor quotidiano num apartamento "vigiado" pela morte. Apesar dos prémios, no referido festival e noutros, o filme nunca chegou a ser distribuído nas salas portuguesas e Matuszynski acabou por ficar meio esquecido. Isto até ao último ano, quando o vimos regressar à competição do LEFFEST com o thriller dramático Sem Deixar Rastos, que agora se estreia.
A história tem, de novo, uma base verídica: a morte do jovem de 18 anos Grzegorz Przemyk, em maio de 1983, vítima de espancamento pela polícia numa esquadra de Varsóvia, e todo o aparelho político que se moveu para encobrir o crime. Pelo eco mediático, lembramo-nos de George Floyd. Em entrevistas, o realizador não deixou de fazer esse paralelismo, até porque o seu ímpeto de dar uma imagem universal da violência coincidiu, durante a produção do filme, com o caso deste afro-americano assassinado às mãos da polícia de Minneapolis. "Lembrei-me de pelo menos sete grandes casos, com algumas semelhanças, ao fazer o filme. Isto está sempre a acontecer, e eu quero perceber porquê", disse ao site Cineuropa. Para ele, a Polónia de 1983 "está ao virar da esquina".
Nos primeiros minutos de Sem Deixar Rastos o ar ainda circula. Grzegorz celebra com os amigos o fim do ensino secundário, e a sua manifestação de alegria numa praça de Varsóvia não passa despercebida às forças do então regime comunista. Juntamente com um dos amigos, Jurek, é abordado por dois polícias que lhe pedem o documento de identificação, supostamente ao abrigo da lei marcial cujo período estava a terminar. Ao recusar apresentá-lo (dizendo que o deixou em casa), numa fração de segundos o par é empurrado para dentro de uma carrinha e levado para a esquadra onde tem lugar o abominável episódio... Esse que justifica o título, e que em rigor deveria ser "sem deixar marcas": o termo usado pelo polícia que ordenou aos colegas a agressão na barriga, em vez das costas, para evitar hematomas visíveis. O jovem morreria pouco depois, em consequência da brutalidade presenciada pelo amigo Jurek.
Se o caso de Grzegorz não ficou encerrado no momento da tragédia, inclusive levando uma multidão às ruas no dia do funeral, que pôs o governo em alerta ("tornou-se uma questão política"), é porque o rapaz era filho da poetisa Barbara Sadowska, uma voz da oposição cujos esforços para proteger Jurek, a única testemunha, se revelaram demasiado pesados. Baseando-se num livro de reportagem do jornalista Cezary Lazarewicz, o realizador observa com paciência metódica a máquina conspirativa que se ergueu, em grandes salas e corredores frios, para destruir qualquer hipótese de a verdade prevalecer através desse jovem. Desde a manipulação da sua família conservadora a atos de espionagem e intimidação levados a cabo por uma rede de funcionários do terror, os exaustivos detalhes burocráticos deste mundo perverso são as linhas e a agulha com que Matuszynski cose a atmosfera dos anos 80 numa Polónia asfixiada. Tudo isto envolvido pelo formato de 16mm, que torna palpável a densidade da época.
Essa preocupação de captar, com rigor, a textura de um tempo, sobretudo no seu plano mais íntimo, é algo que já fazia de The Last Family uma extraordinária peça de nostalgia envenenada. Como se a linguagem própria dos objetos, a sua presença num espaço doméstico, o grão da película (no caso de The Last Family, os vídeos caseiros) ou uma canção que se ouve no rádio, testemunhassem o labor da morte. No primeiro filme, essa sensação misturava-se com um rasgo de humor macabro, mas Sem Deixar Rastos canaliza tudo para o drama mais cirúrgico, preservando uma leitura fina da dinâmica familiar.
Como se aludia no princípio deste texto, talvez a característica que melhor define o trabalho de Matuszynski seja a capacidade de combinar a agitação humana com uma certa quietude enraizada na melancolia do tempo. Esse movimento acontece dentro da própria estrutura do filme, que começa ao sabor da euforia juvenil, depois interrompida por um quadro de violência atroz, dando lugar a um processo longo de ações mais ou menos silenciosas que vão minando a possibilidade de justiça, ao mesmo tempo que sugam a energia dos corpos. A fúria está sempre nas entrelinhas, mas a abordagem do realizador polaco é sóbria, sólida, inteligente, e tem um apreciável toque de obsessão (mais uma vez, lembra a personagem do pintor de The Last Family, que não resiste a filmar tudo o que se passa na sua casa: até os seus entes queridos mortos). Sem Deixar Rastos pode não ter a veemência e loucura doméstica da primeira longa de Jan P. Matuszynski, mas é sem dúvida a confirmação de que aqui há cineasta.
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