Ninguém come um polvo vivo e não há vislumbres de sadismo, nem nada que se pareça. Eis o que importa começar por dizer sobre o novo Park Chan-wook. Em todo o caso, por trás de Decisão de Partir está o mesmo realizador de Oldboy - Velho Amigo e A Criada, agora muito mais moderado na violência, mas com aquela reconhecida habilidade para explorar os impulsos humanos numa teia narrativa que nos mantém em agradável suspensão e desequilíbrio até ao fim. Mais ou menos como o protagonista do filme, um detetive que é apenas "um tipo normal a fazer o seu trabalho de maneira comum". A descrição vem do próprio realizador, que confessou à publicação The Hollywood Reporter ter-se cansado do estilo "detetive durão e/ou genial" que abunda nos thrillers dramáticos. E se é verdade que este detetive (excelente Park Hae-il) está mais próximo de um comum mortal do que de Sherlock Holmes, o mesmo princípio de normalidade não tem cabimento na abordagem de Park Chan-wook ao género. Mas vamos por partes..Como em qualquer policial, o aparecimento de um cadáver faz as honras da história. Neste caso, um homem que terá caído de um penhasco durante uma escalada. Ou não. É preciso investigar - começando e acabando na bela viúva (Tang Wei) que é chamada para interrogatório, e que aos olhos desse agente principal desafia algo da ordem comum dos suspeitos. A atração é imediata e evidente, mas não se cose pelas linhas tradicionais da intriga de femme fatale e quejandos. Ele passa a observá-la à distância, tanto no trabalho (ela é cuidadora domiciliária de idosos) como em casa, mas nessa visão mediada por binóculos tudo pode acontecer. Por exemplo: ele imaginar-se no sofá onde ela se senta à noite para jantar gelado e fumar um cigarro, cujas cinzas ele apara com o cinzeiro... Sim, é através destes toques ou truques sensoriais que Chan-wook aplica o seu barroco dispositivo cinematográfico, quebrando as leis da física para privilegiar a imaginação romântica que une as duas personagens, para lá de qualquer limitação do plano real. Ou seja, a simples contemplação através de uma lente equivale à fantasia de estarem a respirar o mesmo ar. De resto, ele não é solteiro mas a vida de casado é apenas um capítulo cómico..Quando damos por isso, a investigação deixa de ser um ato oficial (embora ele conserve uma margem mínima de desconfiança), e algo parecido a um relacionamento amoroso surge entre esse detetive e, para todos os efeitos, a suspeita. Há refeições caseiras e passeios à chuva, mas a psicologia criminal não se afasta de nenhum cenário, infundindo a própria química entre os dois. Já para não falar da insónia crónica do protagonista, que abranda neste interlúdio sentimental, mas promete voltar a atacar....Park Chan-wook agarrou num clássico enredo detetivesco e baralhou o esquema pela via das formas, usando a plasticidade do cinema (como só ele) para envolver o espetador numa vertigem que não diz apenas respeito ao desejo das personagens. A vertigem passa pela sofisticada montagem espaciotemporal, que nos faz sair de uma sala doméstica para as ruas de Busan, com um corte limpo, e assistir à memória de uma brilhante perseguição por cima de telhados.... O que é que essa cena acrescenta à história? Aparentemente nada. E aí reside o fascínio: que outro realizador da Coreia do Sul se aventura assim na elasticidade do cinema, ignorando os preceitos e a lógica de um foco narrativo? Vasculhando pistas aqui, resolvendo enigmas acolá, o importante é amarrotar as emoções que tendem a apresentar-se engomadas e prontas a vestir..Justamente, sem ser o mais aprimorado Park Chan-wook, mas com momentos de altíssimo quilate, Decisão de Partir tem um poder hipnotizante que assenta num forte ângulo subjetivo. É o drama policial abordado com uma elegância irresistível - alegremente minada de humor decorrente de personagens secundárias "comuns" - e um assombro romântico que concorre para um final à altura da sua longa duração. Há como que uma inebriante nota de fatalismo a pontuar uma grande estrutura indecisa no tom e segura nos gestos. Um filme que até à primeira metade faz pensar "onde está o manual de instruções disto?", mas que ao fim desse tempo, mais coisa menos coisa, começa a entrar na veia e é como nicotina relaxante..Enfim, não é preciso elevar Decisão de Partir através de vistosas comparações cinéfilas. Não é um filme que se ponha em bicos de pés para ser mais do que aquilo que é: um ensaio livre sobre a estrutura de um género que, depois de usado, se despe como uma pele morta. E, ainda assim, lembramo-nos de A Mulher Que Viveu Duas Vezes, de Hitchcock, em jeito de referência remota, a sinalizar um desejo de maturidade assumido pelo realizador, que de qualquer modo não tem nada que ver com semelhanças formais. Ainda nas suas palavras à Hollywood Reporter: "Quando digo que é um filme para adultos o que quero dizer é que (...) é para quem conhece a experiência de ter um relacionamento amoroso de muita subtileza e de sentimentos difíceis de definir - as complicadíssimas mudanças psicológicas que nos acontecem ao longo da vida.".dnot@dn.pt