É um livro cheio de móveis que estalam à noite este O Tamanho do Mundo, de António Lobo Antunes. Não porque o escritor tenha enveredado, ao 32.º romance, pela novela gótica mas porque, nos mundos íntimos que cria, nada consegue ser mais assustador do que a terrena solidão: "A solidão mede-se pelos estalos dos móveis à noite, quando a poltrona em que me sento de súbito desconfortável, enorme, e os objectos aumentam nos naperons, inclinados para mim, a escutarem (...)"..Lobo Antunes regressa, assim, a um tema que há muito o assombra: a solidão, em particular a que acompanha a velhice, quando as perdas se avolumam num rol demasiado doloroso. "(...) A velhice não é roubarem-nos o futuro, é terem-nos roubado o passado, até a voz dos meus pais levaram, porém isto que diga continua a acontecer (...)", escreve em Da Natureza dos Deuses, publicado em 2015. Em O Tamanho do Mundo (obra mais breve do que o habitual) cruza-se o desespero de várias personagens, que, à vez, vão tomando conta da narração: Um velho empresário, a quem o sucesso não sossega os fantasmas nem mitiga a solidão; a filha com que mantém uma relação marcada por arrependimentos mútuos; uma cuidadora movida por propósitos pouco claros e o amante desta, um advogado sem grandes escrúpulos..De dia, quando os móveis ainda não estão tomados pelos estalidos da sua insónia, o velho contempla o Tejo durante horas sem fim: "Às vezes pergunto-me qual a razão de não ter feito nada pelo meu pai quando ele deixou de sair de casa e passava os dias numa cadeira diante da janela, calado, a olhar o rio e a mover os dedos devagarinho, um a um, repetindo a lengalenga que a tia Deodata, uma velhota amiga da família lhe ensinou quando era pequeno (...)". Nessas horas vazias chega a nostalgia sem remédio do amor perdido: "E portanto que é da tua paixão por mim e do medo que eu te deixasse, do teu lábio a vibrar, da tua mãe com ciúmes da gente, a indignar-se lá atrás, onde não reparávamos nela, tão secundária era (...)"..Mas em todas as personagens/narradores, qualquer que seja a sua idade, vive o "demónio" das memórias cruéis: "Claro que a partir da altura em que a minha mãe e eu mudámos da cave frente ao jardinzeco para um primeiro andar longe, sobre um restaurante chinês sempre a cheirar a gato à Pequim e a chope soi de cisne de lago nunca mais encontrei o meu pai." Ou curiosidades mórbidas despojadas de piedade: "Ainda pensei ir à igreja a fim de ver se aquilo muda a cor às pessoas e não muda, apenas criaturas amarelas, de feições aparafusadas à cara (...) rodeado de criaturas em bancos compridos, imóveis como pombos nas estátuas dos generais e nisto passos a nascerem no corredor (...).".Perturbador (como, aliás, a maior parte da obra de Lobo Antunes), O Tamanho do Mundo pertence à genealogia dos livros insones que o escritor sempre disse preferir. Numa entrevista ao jornal espanhol El País, datada de 2019, o escritor contava: "Em casa dos meus pais havia muitos livros; com cinco ou seis anos, levantava-me de noite para fazer chichi, estava tudo escuro, mas via nas paredes que os livros maus dormiam e que os bons, como Os Irmãos Karamazov, de Dostoevski, tinham os olhos abertos: era a insónia dos bons livros: e eu disse a mim mesmo vou fazer livros com insónia." Cerca de um ano antes já dissera ao DN (ao jornalista João Céu Silva): "Porque acho que Guerra e Paz é um livro bom e um livro da Odette de Saint-Maurice é mau? Os livros bons são maiores do que a vida. Se lermos Os Possessos de Dostoievski perguntamo-nos como é que aquele homem conseguia encher os livros de grandes trevas vivas? Se o escritor não as tem não é bom...".Para a densidade desta treva viva em particular, contribui ainda a consciência, presente em vários livros, da injustiça social. Na referida entrevista a El País, o escritor afirmava: "O povo português é muito pobre; só agora, com a Democracia, vive um pouco melhor; as diferenças sociais eram muito marcantes e em pequeno não entendia: as famílias com muito dinheiro viviam juntas, sobretudo em Cascais; e assim se protegiam; só falavam entre si; eu pertencia mais ou menos a uma, mas os meus avós tinham uma mansão em Benfica, um bairro pobre de Lisboa, e era tudo estranho, vivia entre dois mundos: ia à igreja e o padre levantava-se para mim, quando eu não passava de uma criança." Um tema que ressurge, embora de forma oblíqua em O Tamanho do Mundo: "(...) A filha da madrinha tão diferente da minha família porque também são esquisitos os ricos, o senhor afinal tímido, quase sem falar comigo, quando muito suspendia o garfo ao jantar, a olhar-me (...)"..O Tamanho do Mundo é o 32.º romance de António Lobo Antunes, que completou 80 anos de idade a 1 de setembro, data em que a Câmara Municipal de Lisboa anunciou a abertura da biblioteca que terá o seu nome, prevista para o princípio de 2024, precisamente na Benfica da sua meninice..Para além das suas crónicas publicadas na imprensa, e já reunidas em volume, falamos de uma obra literária que cedo obteve reconhecimento de crítica e público em Portugal e no estrangeiro. Em 1979 publicou os seus primeiros livros, Memória de Elefante e Os Cus de Judas, seguindo-se, em 1980, Conhecimento do Inferno. Estes primeiros títulos transformaram-no quase imediatamente num dos autores contemporâneos mais lidos e discutidos no âmbito nacional e internacional. Foi capa de The New York Times, Los Angeles Times e The Washington Post. Outro impulso decisivo veio de Espanha, com Jacobo Martinez de Irujo, da editora Siruela, que inclusivamente pôs o escritor português a trabalhar na casa dele, em Ampurdan..Todo o seu trabalho literário tem sido, ao longo dos anos, objeto dos mais diversos estudos, académicos ou não, e dos mais importantes prémios, nacionais e internacionais, entre os quais o Prémio Juan Rulfo, 2008, Prémio Camões, 2007, Prémio Jerusalém, 2005, Prémio Ovidio, 2003, e Prémio Europeu de Literatura, 2001. Está traduzido em dezenas de línguas e está incluído na francesa Biblioteca da Pléiade. Um reconhecimento que, nas palavras do autor, vale mais do que o Nobel, a que é um eterno candidato: "Estou farto de ouvir falar do Nobel, é apenas um prémio literário em que as últimas pessoas que o têm ganho não me agradam. Se formos ver, os vencedores dos últimos anos não interessam. Estou a ser totalmente sincero, pois acho que se dá excessiva importância a isto (...) O que posso pedir mais? Não consigo entender um prémio como a glorificação em relação a uma literatura de um determinado país - e eu já ganhei tantos! -, porque se eu contasse os bastidores de alguns nada tinham que ver com literatura. Estou tão ocupado a escrever... Não tem importância, sou melhor do que o Platão..." (DN, 7/10/2018). No entanto, na mesma entrevista, não deixava de admitir: "Houve uma altura em que estava bastante sedento disso, estava enraivecido, mas há uns tempos em que estou em paz... (...)"..George Steiner compara-o em importância a William Faulkner e a Joseph Conrad, enquanto Harold Bloom (o homem de O Cânone Ocidental) o considera "um dos escritores vivos que mais importará no futuro." Para este reconhecimento contribui também o conhecimento que Lobo Antunes tem da literatura mundial, com uma preferência assumida pelos clássicos russos como Dostoevski ou Tolstoi (recomenda frequentemente uma obra breve deste último, A Morte de Ivan Ilitch), mas não só. Recentemente, nas páginas do La Repubblica, o escritor e jornalista italiano Antonio Gnoli dizia que começara a ler o mexicano Juan Rulfo (autor de Pedro Paramo) justamente a conselho de Lobo Antunes..Para a sua lenda contribuem também as declarações frequentemente desconcertantes, como aquelas em que se mostrou pouco entusiasta de Fernando Pessoa: "O livro do não sei o quê (referindo-se a O Livro do Desassossego) aborrece-me até à morte. A poesia do heterónimo Álvaro de Campos é uma cópia de Walt Whitman; a de Ricardo Reis, de Virgílio. Eu pergunto-me se um homem que nunca f... pode ser um bom poeta." Ou aquelas em que, numa entrevista ao El País, afirmou (coincidindo um pouco com a posição do o seu arqui-rival, José Saramago): "Não consigo descobrir muitas diferenças entre a gente da península, somos a mesma coisa, temos a mesma maneira de reagir, embora se coma melhor na Catalunha do que em Portugal. É uma pena que não sejamos o mesmo país, todos os ibéricos. Filipe II de Espanha e I de Portugal tinha todo o direito de ser nosso rei, era neto do monarca legítimo." E acrescentava que o "grande amor" da sua infância foi uma criada galega que trabalhara para os pais..Com uma obra invulgarmente extensa e um ritmo de publicação correspondente, Lobo Antunes nunca escondeu o esforço que põe em cada obra. Na já citada entrevista ao El País disse:."Terminar um livro é muito duro, é assinar os papéis para o divórcio, fica um vazio muito grande, deixas de ouvir as vozes que te acompanharam durante muito tempo. É a única maneira que um homem tem de se sentir grávido. Há que dedicar-lhe muito esforço e tens medo que nasça um monstro, gostarias sempre que o teu filho fosse o mais bonito e o mais inteligente. Procuro esquecer os livros já escritos. É como acontece com as mulheres que amamos: temos de esquecer as anteriores em favor da atual." Este O Tamanho do Mundo, povoado de móveis que estalam à noite e de vozes outrora familiares que nos vão sendo roubadas, está dedicado aos dois irmãos já falecidos do escritor: "Aos meus irmãos João e Pedro porque toda a vida fizemos chichi juntos, lado a lado, para a cascata do jardim.".dnot@dn.pt