A segunda vida de Selma Blair

Documentário íntimo que acede à luta da atriz diagnosticada em 2018 com esclerose múltipla, Introducing, Selma Blair é um olhar sem filtros sobre a mulher que fez da bengala um adereço de estilo. Disponível na HBO Max.

Apesar de não ser, na aceção cabal do termo, uma estrela de Hollywood - isto é, se ignorarmos as requintadas poses fotográficas para a Vanity Fair, Vogue ou Harper"s Bazaar -, a americana Selma Blair deixou a sua marca nos espectadores ao longo de dezenas de filmes, sobretudo os Hellboy de Guillermo del Toro, onde interpreta a namorada do herói titular. "Sempre soube que seria uma secundária", diz a certa altura em Introducing, Selma Blair, de Rachel Fleit, referindo-se ao padrão da sua carreira. Ironicamente, este é o documentário (estreia da HBO Max) que a retira dessa categoria dando-lhe um doloroso papel, mas ainda assim, principal. Senhoras e senhores, "apresenta-se" a atriz que quer renascer, depois de lhe ter sido diagnosticada esclerose múltipla em 2018. Este é um olhar intimista sobre a sua luta, sem outras bengalas para além da que usa como símbolo estiloso da inevitável degeneração física.

É por aí, por essa forma leve de abordar a doença, que a câmara entra pela casa de Blair, em Los Angeles, seguindo a transformação da atriz em Norma Desmond, essa diva reclusa do Sunset Boulevard de Billy Wilder, com o seu turbante glamoroso, maquilhagem a rigor, um vestido tigresa e o toque final de uma poltrona vermelha onde se senta com o cãozinho adormecido ao colo, enquanto fala do carinho que tem recebido nas redes sociais, e de como espera tornar-se "melhor pessoa", de algum modo, inspiradora. Primeira dica: não escolham uma bengala qualquer, diz.

Este vislumbre performativo, para lá de toda a sua dimensão lúdica, é, porém, uma máscara. Ao fim de alguns minutos, Blair deixa de conseguir articular uma palavra e o corpo começa a contorcer-se... Assistimos à introdução crua e autoconsciente do documentário: a atriz quer que a vejam naquele estado, porque é exatamente pela manifestação física da doença que ela pode comunicar o que lhe vai na alma.

Juntamente com Val (2021) e Still: A História de Michael J. Fox (2023) - o primeiro sobre Val Kilmer, após a batalha contra um cancro na garganta, o segundo sobre o ator de Regresso ao Futuro, diagnosticado com Parkinson ainda jovem - Introducing, Selma Blair forma uma liga documental em torno de um tipo de registo que noutra época seria mantido longe da vista, para não estragar o verniz da existência hollywoodesca. Os três são objetos muito diferentes, com focos distintos, mas preservam uma comovente ideia de partilha.

O caso de Blair é particularmente tocante, porque se trata de uma espécie de diário da doença e do longo tratamento que fez para proceder a um transplante de células estaminais, cujo risco de morte não era 0%... O que salva o documentário da escuridão sentimental é o humor traquina da atriz, paredes meias com uma angústia desarmante, que ela não controla e faz parte do processo. Entre a luz das pequenas coisas e as trevas da incerteza, Selma torna-se uma "personagem" cativante, sempre à beira do abismo, sempre com uma honestidade que celebra a vida vulnerável. Sem inventar demasiado, e confiando nas pinceladas naturais da sua Norma Desmond, Rachel Fleit assina um retrato fiel à inquietação epidérmica da heroína, pronta para ser um modelo imperfeito de inspiração.

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