A realidade surreal de Lucrecia Martel regressa às salas de cinema
Realizados entre 2001 e 2008, os três primeiros filmes de Lucrecia Martel estão de regresso às salas portuguesas em novas versões digitais. Neles encontramos uma subtil visão crítica da sociedade argentina que, no seu limite mais cruel, discute a própria noção de civilização.
De que falamos quando falamos da Argentina? De Lionel Messi, garantem os oráculos futebolísticos... Convenhamos que é pouco. Muito pouco mesmo, sobretudo se pensarmos que, em 1966, na cidade de Salta, capital da província argentina do mesmo nome, nascia Lucrecia Martel, nome grande do cinema contemporâneo e uma das mais originais narradoras do século XXI. A prova? As suas três primeiras longas-metragens - O Pântano (2001), A Rapariga Santa (2004) e A Mulher sem Cabeça (2008) -, agora regressadas às salas portuguesas em novas versões digitais, para já em Lisboa (Nimas) e Porto (Trindade), com distribuição da Nitrato Filmes.
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São filmes habitualmente referidos como a "Trilogia de Salta", por se localizarem na região onde a realizadora nasceu, desenhando um painel multifacetado de ambientes, histórias e personagens. Daí a considerarmos que estamos perante crónicas autobiográficas vai um passo que a própria Lucrecia Martel talvez não negue, sobretudo a propósito de O Pântano que, como ela já explicou em diversas entrevistas, nasceu da sua observação de comportamentos mais ou menos ritualizados de famílias de Salta.
Ainda assim, tal descrição corre o risco de reduzir os filmes a "crónicas de costumes" mais ou menos severas, porventura pitorescas. Seria, de facto, uma maneira de passarmos ao lado de uma questão central nas narrativas de Lucrecia Martel. A saber: a diferença, para não dizer a contradição, entre as matérias visíveis das vidas das suas personagens e os fantasmas que pontuam essas vidas. No limite, o seu cinema discute o próprio conceito de história humana e, direta ou implicitamente, a dimensão política dessa história - recorde-se o exemplo de Zama (2017), a sua quarta longa-metragem, sobre a experiência de um magistrado espanhol, Don Diego de Zama, em finais do século XVIII, numa zona remota da Argentina.
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O lugar das crianças
Quando surgiu O Pântano, revelado no Festival de Berlim de 2001, o impacto foi tanto mais forte quanto o retrato das singularidades de um grupo de personagens de uma burguesia algo boçal, fechada na certeza beata da sua riqueza, possuía um claro apelo universal. Ao mesmo tempo, porém, a contundência do olhar de Lucrecia Martel, atento a todos os detalhes, da violência dos olhares ao suor dos corpos, escapava a qualquer modelo de observação "sociológica".
A própria realizadora chamou a atenção para o facto de lhe parecer que o filme não justificava o rótulo automático de "realista". Porquê? Sem dúvida porque cada momento, mesmo o mais banal ou inconsequente, parece poder transformar-se em vertigem surreal, indecifrável, talvez monstruosa. Há mesmo uma dimensão de terror no seu cinema que nada tem que ver com os estereótipos que pululam nos filmes do género: o medo não é um estado que seja provocado por algum acontecimento específico, mas sim uma "coisa" já instalada no quotidiano, uma espécie de avesso das certezas que as personagens pretendem exibir através do caráter supostamente intocável do seu estatuto social.
Rezam as crónicas que Lucrecia Martel realizou mais de dois mil testes, muitos deles filmados em vídeo, para encontrar os intérpretes das crianças que circulam pelas cores densas dos cenários de O Pântano. Essas crianças representam, afinal, o absurdo de todas aquelas existências: a sua condição de herdeiros dos equívocos valores dos mais velhos transforma-os em "aliens" do seu próprio território familiar e social.
Contos morais

A mesma sensação de que algo de imponderável e inquietante atravessa o quotidiano contamina as histórias de A Rapariga Santa e A Mulher sem Cabeça. No primeiro caso, a descoberta da sexualidade por uma jovem cruza-se, de forma inusitada e perturbante, com elementos de uma religiosidade que parece pairar como um destino compulsivo; no segundo, uma mulher burguesa (podia ser uma personagem de O Pântano) tem um acidente quando, ao conduzir o seu carro, distraída pelo telemóvel, atropela alguém... ou julga atropelar, de tal modo a ausência de vestígios se vai repercutindo no seu dia a dia como um pesadelo sem rosto.
Todas estas peripécias serão sugestivas, mas insuficientes, para definir a respiração dramática dos filmes de Lucrecia Martel, dir-se-ia a sua capacidade de "dar a ver" o que nas relações humanas muitas vezes existe e persiste como realidade invisível, impossível de objetivar. Observe-se, por exemplo, como ela filma muitas imagens que parecem subjetivas (atribuíveis ao olhar de alguma personagem), mas cuja definição se perde no cruzamento de muitos olhares, nem todos conscientes do efeito que podem ter sobre as personagens circundantes.
Em termos afetivos, haverá, talvez, outra maneira de dizer isto: Lucrecia Martel filma personagens que, quanto mais querem escapar aos limites sensoriais da sua solidão, mais parecem multiplicar as barreiras que separam o seu desejo do desejo dos outros. Nesta perspetiva, a abundância de elementos naturais, eventualmente paisagísticos, que descobrimos em O Pântano, A Rapariga Santa e A Mulher sem Cabeça envolve uma cruel ilusão: na verdade, nada é natural, tudo é civilizacional. E tendo em conta os sobressaltos vividos nos espaços claustrofóbicos destes obsessivos contos morais, não parece haver moral capaz de redimir as nossas imperfeições.
dnot@.pt
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