Há uma sala com vida recente no coração de Lisboa que está a tornar-se um ponto nevrálgico para os espetadores que procuram alternativas ao mainstream. É lá, no Cinema Fernando Lopes, que se estreiam os filmes com carimbo da distribuidora Cinema Bold - geralmente, títulos fora da caixa, que correriam o risco de passar despercebidos nas salas comercias -, mas há também espaço para ciclos. Pode ser à volta de um realizador, a propósito de um novo filme, ou então mostras temáticas. É este o caso de América "70, ciclo programado pelo Alvalade Cineclube, que agarra a essência de um certo cinema americano a partir de sete obras, exibidas todas as quintas-feiras até 15 de dezembro, em sessões seguidas de conversa com diferentes convidados..A decorrer desde a última semana, com o arranque marcado por Five Easy Pieces (1970), de Bob Rafelson, com Jack Nicholson, o ciclo percorre várias expressões da cinematografia de uma época para daí extrair um retrato geral. Ao DN, o programador Bruno Castro esclarece o que aqui se revisita: "Os anos 1970 foram o período mais honesto do cinema americano. Depois da idade de ouro dos musicais e épicos a cavalo, e antes de todo o açúcar que E.T. e amigos trariam, foi nesses anos que os realizadores abraçaram a ideia de filmar como quem vive, e aceitar a realidade dura, suja e difícil da vida. Não é por acaso que os "70 concentram várias preciosidades da história do cinema, viscerais, angustiadas ou dançantes, profundamente comprometidas em fazer do cinema algo diferente da vida mas tão próximo da mesma." Para além disso, identifica-se uma forte relação com a atualidade: "Possivelmente nunca estivemos tão próximos de muitas daquelas personagens e vivências, hoje, em 2022. Esta sensação de estranheza e fragmentação da humanidade estava toda lá e está agora aqui. É este o tempo para voltar a entrar no táxi.".O táxi, entenda-se, é o da personagem solitária de Robert De Niro, Travis Bickle, numa das obras-primas de Martin Scorsese. Tratando-se da grande referência da Nova Hollywood, Taxi Driver (1976) não podia faltar neste programa - passa dia 24 -, com a insónia nova-iorquina pronta a entranhar-se na pele, através da banda sonora de Bernard Herrmann, mas sobretudo contida no próprio argumento de Paul Schrader, que apanha o nervo do pesadelo interior do protagonista, um veterano da guerra do Vietname, com violência a fermentar ao sabor da decadência noturna de ruas fumegantes..Antes de Taxi Driver, há outras duas paragens obrigatórias: Serpico (1973), de Sidney Lumet, a passar nesta quinta-feira, e Uma Mulher Sob Influência (1974), de John Cassavetes, no próximo dia 17. O primeiro com Al Pacino no papel de um herói da vida real, Frank Serpico, polícia ítalo-americano que arriscou tudo na luta contra a corrupção no Departamento de Polícia de Nova Iorque - um filme que é Lumet puro, por sinal, um dos realizadores que melhor dirigiu o jovem Pacino; o segundo com Gena Rowlands a assumir a perturbação mental de uma dona de casa em vertigem, numa daquelas performances arrepiantes que só Cassavetes conseguia extrair dos seus atores, em particular da sua mulher. Ambos, Pacino e Rowlands, em papéis de nomeação para Óscar..Em dezembro, o ciclo prossegue com títulos igualmente fundamentais mas mais raros e abertos à (re)descoberta. No primeiro dia do mês exibe-se Car Wash (1976), refrescante comédia de Michael Schultz - originalmente concebida como um musical - em torno de um grupo de amigos que trabalha num posto de lavagem de carros em Los Angeles. Segue-se, no dia 8, Girlfriends (1978), de Claudia Weill, um olhar sobre a amizade feminina nos termos do que veio a tornar-se um subgénero, não apenas no cinema (em especial, o independente) mas também nas séries, com a vida na grande cidade a fazer-se tema por excelência. E a encerrar o programa no dia 15 temos Killer of Sheep (1978), primeira longa-metragem de Charles Burnett, uma verdadeira raridade, com um quê de neorrealismo italiano na sua abordagem da cultura afro-americana de Watts, Los Angeles..Cada um à sua maneira, todos estes filmes dizem algo sobre a América naquele momento. "Existem várias Américas dentro destes filmes. Em Serpico há uma América angustiada com a corrupção, a tentar navegar num mar de sujidade humana, um anti-herói que se converte em herói aos nossos olhos, mesmo perdendo a taça dourada no fim. Em Taxi Driver há uma América noturna e descompensada, que vê os outros pela lente da observação armada e pelo isolamento psicológico. Em Car Wash, há uma América que dança enquanto trabalha, plena de sonhos e de desejos, que aceita as deixas queer e contraria a blaxploitation enquanto vê passar estrelas como cameos. A diversidade dos seventies está toda naquelas Américas: ambivalente, sonora, tão negra quanto genuína", resume Bruno Castro..E como é que se podem ler estes filmes no interior das obras dos realizadores para aqui chamados? "Na carreira dos realizadores a leitura é diferente. Para Michael Schultz, Car Wash é um ovni enorme, um filme invulgar numa carreira dominada pelo trabalho para a televisão. Em Cassavetes, Uma Mulher Sob Influência é a pedra de toque de todo um estilo e abordagem, um ponto de fuga para onde tudo parece convergir. Para Scorsese, Taxi Driver está numa fase inicial de carreira, em que já se percebia que a época dos estúdios estava morta e era preciso escrever o cinema na rua... Uma das grandes belezas dos anos 70 são as mil leituras possíveis, que dão outras tantas conversas. As personagens dão diálogos, os realizadores dão linhas de argumentos, as histórias dão serões imensos num café com amigos. Será que o cinema voltou a ser assim?".dnot@dn.pt