Diz a lenda que, na década de 1930, estando a poetisa brasileira Cecília Meireles em viagem por Portugal, combinou encontrar-se com Fernando Pessoa. Dirigiu-se à Brasileira do Chiado, conforme estabelecido entre os dois, e esperou durante duas horas. Como se o poeta não aparecesse, Cecília resignou-se a voltar ao hotel. Aguardava-a um exemplar autografado de A Mensagem e um bilhete em que Pessoa explicava que tinha consultado o horóscopo pela manhã e concluíra que o dia não era propício para tal encontro..Com o propósito de fazer da poesia um "lugar" que seja o contrário disto, promovendo a reunião entre pessoas de diversas nacionalidades, a Casa da América Latina em Lisboa promove na tarde deste domingo, 26, mais uma festa da Poesia. Uma festa onde, como veremos, não faltará sequer a evocação dessa Cecília Meireles que, mesmo episodicamente defraudada por Pessoa, nunca deixou de amar Lisboa, a quem dedicou vários escritos. Para o editor, poeta e fotógrafo Ozias Filho (nascido no Rio de Janeiro e há muito radicado em Portugal), que também participa na Festa, este acontecimento é um momento essencial "para a promoção e divulgação da poesia, que é sempre uma tarefa árdua e constante, e de muitos recuos (mais do que avanços)". Mas, para Ozias, a importância da Festa está também na pluralidade de expressões: "Aqui temos a oportunidade de fazer chegar às pessoas as nossas diversas vozes. Não só a minha, que escreve e diz em português, mas sobretudo as de outras latitudes, que porventura teriam mais dificuldades em chegar ao público português. A Casa da América Latina tem um grande mérito, pois há anos vem desenvolvendo e promovendo a Literatura no geral, e a poesia em particular.".Esta edição da Festa abrirá às 15.00, com o lançamento do livro Vocação Suspendida, da colombiana Lauren Mendinueta, com apresentação do poeta e crítico literário, António Carlos Cortez. Haverá acompanhamento musical de Edouard Rambourg, Nuno Rocha e Walter Areia e leitura de poemas por Paula Cortes. Natural de Barranquilla, Colômbia, Lauren Mendinueta, que também é tradutora e ensaísta, recebeu vários prémios de poesia em língua espanhola e está traduzida para idiomas como português e italiano. Em 2021, traduziu e organizou uma antologia de Fernando Pessoa publicada em Bogotá, com o título El Poeta Habitado. Vocação Suspendida, o livro que será lançado nesta Festa, constitui a tradução para português de uma das suas obras mais celebradas, publicada no seu país em 2008..Seguir-se-á uma sessão de leitura de poemas por Virginia Moreno Goitia (Venezuela), Carolina Bustos Beltran (Colômbia) e Rodolfo Häsler (Cuba) e uma outra de leitura livre com as participações de Julia Wong (Perú), Ozias Filho (Brasil), Ronaldo Cagiano (Brasil), Maurício Vieira (Brasil) e, uma vez mais, Lauren Mendinueta..A encerrar, às 18.00, realizar-se-á um espetáculo musical da portuguesa Cristina Clara, acompanhada por Pedro Loch (Guitarra Clássica) e Edu Miranda (Bandolim). A ideia é proporcionar ao público uma viagem musical e poética de estórias musicadas, inspiradas pelo ensaio Expressão Feminina da Poesia na América, de Cecília Meirelles, originalmente apresentado numa conferência em 1956. Nele, a autora defendia a importância de recolocar as mulheres ibero-americanas na História da Literatura dos seus países, invariavelmente contada a partir de uma perspetiva masculina. Para Cecília, a mulher atravessou "os tempos em cativeiro ou no sacrário, quase incomunicável, como os prisioneiros e os deuses". Todavia, as suas "faculdades de alma" jamais deixaram de palpitar sob tais muros. Além disso, considerava, a mulher desempenhou sempre um papel preponderante na transmissão da arte oral, sempre ao seu alcance, a ponto de ela mesma ter-se convertido num "livro vivo e emocionante", depositária de "todos os ensinamentos morais e práticos retidos permanentemente pela memória". Numa entrevista ao jornal paulistano A Gazeta nesse mesmo ano de 1953, Cecilia Meireles denunciava já o preconceito com que era olhada a obra literária produzida por mulheres: "a mulher poetisa é tratada apenas como uma dilettante. Considera-se que o poeta tem sempre coisas a dizer, mas a poetisa, não. Em geral, o homem costuma segregar a mulher que escreve, que é, por assim dizer, uma mulher prendada. Dizem os homens que a poesia na mulher é uma habilidade. Mas a mulher também tem o que dizer. Tal como o homem, também tem uma experiência humana." Passaram-se 70 anos e esta mensagem não ganhou uma ruga..dnot@dn.pt