Na história dos estúdios do Rato Mickey, A Pequena Sereia é mais do que apenas um dos vários sucessos da marca. Na verdade, trata-se da primeira animação da fase que veio a ser oficialmente conhecida como o "Renascimento da Disney": o período compreendido entre os anos 1989 e 1999, quando as suas animações voltaram a configurar o selo de qualidade de outrora, renovando o interesse geral nas produções do estúdio. A Disney Renaissance inclui êxitos de bilheteira como A Bela e o Monstro, Aladdin e O Rei Leão - todos estes já contemplados por versões live action -, mas, de facto, o tempo auspicioso começou com a adaptação de um conto de Hans Christian Andersen sobre uma princesa sereia, Ariel, que se apaixona por um príncipe humano, Eric, e sonha ganhar um par de pernas para poder entrar no mundo dele. O resto faz parte da mitologia dos vilões: a bruxa Úrsula tenta fazer um acordo mágico com Ariel, escondendo as suas maléficas intenções, mas como sempre, o amor vence tudo e as bruxas não têm direito a finais felizes..A Pequena Sereia que chega esta quinta-feira aos cinemas, em imagem "real", conta a mesma história, e não subestima os números musicais que estão no ADN do clássico, mas fez os arranjos próprios do nosso tempo. A começar pela protagonista, Halle Bailey, cuja aparência contrasta com a ruiva de olhos azuis da animação. A atriz e cantora foi um dos talentos que participaram na conferência de imprensa virtual a que o DN teve acesso, e falou sobre o modo como a personagem acabou por fazer parte do seu crescimento pessoal: "Sinto que a Ariel me ajudou no processo de me encontrar e gostar desta versão jovem de mim mesma. No fundo, neste momento já passaram cinco anos da minha vida, dos 18 aos 23 [o tempo de produção]! São anos muito intensos, porque transformadores. Mas sinto especialmente que os temas do filme - o que ela tem de passar com as suas paixões e impulsos, o falar por si, mesmo que seja assustador, e ir em frente... - são coisas que tento adotar e dar à Halle agora. Ela [Ariel] ensinou-me muito, com certeza.".Num elenco que inclui o espanhol Javier Bardem como Rei Tritão (pai de Ariel), Melissa McCarthy como Úrsula, para além das vozes de Awkwafina, Jacob Tremblay e Daveed Diggs - respetivamente, a gaivota Scuttle, o peixe Flounder (linguado) e o caranguejo Sebastian, os três amigos de Ariel -, a diversidade vai até ao ponto de se acrescentar uma personagem, a Rainha Selina, interpretada pela atriz negra Noma Dumezweni, que não existe no original e aqui surge como a mãe do príncipe Eric. Uma opção de casting que "reflete o mundo em que vivemos", diz a americana de origem sino-coreana Awkwafina, resumindo a ideia que vem prevalecendo nas novas produções da Disney. "Toda a gente merece a oportunidade de se ver no grande ecrã. É também isso que este filme celebra", conclui..Missão cumprida nesse aspeto. Mas será que a vida das personagens consegue sobrepor-se ao "realismo digital" de grande parte do filme? Esta nova versão de A Pequena Sereia, assinada por Rob Marshall, um coreógrafo que veio do teatro para o cinema (responsável pelo Regresso de Mary Poppins), tenta dar à narrativa uma outra profundidade emocional, que se reflete inclusive nas duas horas e um quarto de duração. Pelas palavras de Jonah Hauer-King, o ator que veste a pele de Eric, fica claro que houve uma preocupação de acrescentar algo ao romance instantâneo do clássico. Neste caso, a amizade: "Os romances da Disney estão cheios daquela atração instintiva um pelo outro. Todos queremos ver isso. Mas o que foi divertido aqui - e acho que muita dessa dimensão veio de nós próprios, para lá do que se passa no ecrã - foi ver em Ariel e Eric duas pessoas que eram almas gémeas, que se sentiam um pouco inquietas atrás das quatro paredes dos seus respetivos castelos, e que estavam a olhar demasiado para fora e pouco para dentro." Diz o ator que acredita no poder da partilha mútua: "Ambos sentem que estão a ensinar coisas um ao outro. Estão entusiasmados e fascinados pelo mundo um do outro, embora só percebam isso no fim... Acho que é uma mensagem muito boa sobre o que significa estar apaixonado e o que significa estar numa relação que, no fim de contas, está ligada à amizade.".Tudo isto para sublinhar que a magia do live action passa pelos alicerces da realidade. Ou seja, como nota Hauer-King, "o aspeto do príncipe e da princesa da Disney é algo maravilhoso, divertido e emocionante, mas, mesmo vivendo nesse espaço de fantasia, estamos ligados ao mundo real.".Noutra conferência de imprensa com o realizador, o produtor John DeLuca e o compositor Alan Menken (que volta a colaborar nesta versão, depois de ter vencido dois Óscares com a original, pela banda sonora e pelo tema Under the Sea), falou-se mais do cariz musical da produção, e do gosto de trabalhar com atores pouco ou nada habituados a projetar o aparelho vocal - a exceção é, obviamente, Halle Bailey, que aliás tem no tema Part of Your World um dos trunfos da sua performance de "canto de sereia". Menken diz que ficou deliciado ao ouvi-la pela primeira vez... Mas o que dizer da prestação dos outros?."Adoramos trabalhar com atores que são novos no género musical. Porque abordam-no a partir do lugar certo - cantam como a personagem, ou melhor, elevam esta espécie de "cena da vida" através da música, e nem se apercebem!", começa por explicar Rob Marshall. E continua: "Muitos atores têm medo de cantar porque acham que é algo em que têm de ter encaixe. Mas na verdade [cantar] é uma extensão do seu trabalho de representação. E esse é o tipo de canto que apreciamos. Eu cresci, nós crescemos, com Carol Channing, Rex Harrison, Zero Mostel, todos atores maravilhosos que cantam - isso dá vida à música.".Enquanto realizador vindo do teatro, a sensibilidade de Marshall passa muito pela orgânica dos atores. "No cinema, os musicais são um híbrido com o teatro. Não se pode simplesmente entrar e começar a cantar! É preciso aprender, envolver-se na coreografia... O meu trabalho como realizador é proteger os atores. Fazer com que se sintam seguros num espaço onde podem estragar tudo e ser terríveis, e depois melhorar, sem se sentirem julgados. Para mim, é a parte mais importante." Até porque "o que eu nunca quero é que os atores sintam a pressão da produção e da dimensão técnica. Não são os aspetos técnicos que conduzem o filme." Resta ao espectador conferir se as intenções batem certo com o resultado..dnot@dn.pt