Em registo de thriller, a escuridão é boa conselheira. Uma ação que obrigue a sua personagem central, herói ou anti-herói, a resolver durante uma noite um determinado impasse dramático pode envolver um “suspense” muito particular — lembremos exemplos excecionais como Nova Iorque Fora de Horas (1985), de Martin Scorsese, ou Magnolia (1999), de Paul Thomas Anderson. Uma variação mais convencional obriga também essa personagem a pagar uma dívida mais ou menos volumosa, sob pena de estar ameaçada a sua sobrevivência... Assim é o dispositivo de A Noite Sempre Chega (Netflix), uma realização de Benjamin Caron a partir do romance The Night Always Comes, de Willy Vlautin.Lynette, a personagem interpretada pela hiper talentosa Vanessa Kirby, está obrigada a cumprir tal tarefa. Com uma diferença que, em termos dramáticos, se afasta do cliché. Assim, não se trata de pagar uma quantia significativa a um chantagista ou a um gang, mas sim de garantir, junto de uma instituição bancária e através do dinheiro em causa (25 mil dólares), que Lynette não vai perder a casa onde vive com a mãe (Jennifer Jason Leigh) e o irmão mais velho com síndrome de Down (Zack Gottsagen).Mesmo não esquecendo que as dificuldades encontradas por Lynette geram confrontos com figuras pouco recomendáveis, a convenção fica ainda mais distante quando os problemas começam no interior do próprio espaço familiar: é a mãe que, num gesto arbitrário, decide comprar um carro com o dinheiro disponível, pondo em causa a posse da casa e, no fundo, a manutenção de tão precária célula familiar...Enfim, são peripécias que não nos dizem o essencial. A saber: A Noite Sempre Chega é um filme que tem gosto em explorar as singularidades psicológicas das suas personagens (os “bons” e os “maus”), definindo, em pinceladas breves mas certeiras, um universo de abusos e violência que marcaram de modo radical o perfil de Lynette. Mais do que isso: o inquietante labirinto noturno que ela vai ser compelida a percorrer possui uma carga de realismo rara em produções mais ou menos rotineiras como esta (de que a Netflix está saturada), tanto mais intensa quanto surge enriquecida por elaborados momentos de diálogo.Nesta perspetiva, a utilização do ecrã “largo” surpreende pela frieza da sua elegância, em particular na capacidade de valorizar os rostos (logo o trabalho dos atores) num espaço que se abre para uma sugestiva profundidade. Pensamos, por isso, em produções dos grandes estúdios de Hollywood ao longo das décadas de 1970/80, com ficções que sabiam integrar paradoxais elementos “documentais”. Não terá a contundência de Sydney Lumet nem o onirismo de Alan J. Pakula, mas é bom reencontrar tais memórias.