A Natureza na arte da azulejaria apaixona a historiadora Sónia Talhé Azambuja
Como se dá a sua aproximação ao estudo da botânica no azulejo português?
Desde sempre, tive uma paixão pela Arte e pela Natureza, e o meu interesse pelos azulejos surgiu a partir de visitas a jardins históricos especiais, como a Quinta da Bacalhoa e o Jardim do Palácio Fronteira. Formei-me em Arquitetura Paisagista pelo Instituto Superior de Agronomia e, no início da minha carreira, participei em dois projetos de investigação internacionais. Senti que, para estudar e intervir em jardins históricos, devia complementar a minha formação com um curso de História da Arte, na especialidade de Arte, Património e Restauro, na Universidade de Lisboa, tanto ao nível de mestrado como de doutoramento, tendo obtido bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia. No âmbito do meu Mestrado, estudei obras de pintura do século XVII. Este estudo foi publicado em 2006 pela Nova Vega, com o título A Linguagem Simbólica da Natureza. Tenho desenvolvido a minha investigação no centro de investigação no Centro de Ecologia Aplicada Prof. Baeta Neves, e também colaboro com o ARTIS-Instituto de História da Arte. A edição em livro do meu doutoramento ocorreu em 2021, intitulado Plantas, Animais e Paisagem. Para o desenvolvimento das bases de dados relacionais de ambos os estudos, contei com o apoio do meu marido, João Azambuja (NOVA-IMS). Nestes dois livros, analiso mais de 500 obras de pintura [iluminura, pintura retabular, pintura mural e pintura de cavalete], dos séculos XV a XVII em Portugal, com a identificação de mais de 300 espécies de flora e fauna, tendo interpretado o seu significado simbólico.
O que de notável se lhe tem apresentado no que respeita à botânica representada na azulejaria portuguesa?
Durante muito tempo, as figurações botânicas na azulejaria portuguesa foram quase ignoradas pelos investigadores. As plantas representadas muitas vezes possuem um valor simbólico, expressando uma história cultural associada aos seus usos históricos, propriedades terapêuticas, referência a obras literárias da Antiguidade Clássica, mitologia e lendas. Muitas das plantas que surgem na pintura do Renascimento são as mesmas que eram cultivadas nos jardins do Império Romano, sendo muitas delas medicinais e referidas no tratado do médico greco-latino Dioscórides (século I d.C.). Naturalmente, existem plantas muito estilizadas, cuja identificação precisa é difícil. Algumas das espécies botânicas presentes na azulejaria portuguesa têm significados e são usadas como símbolos na Arte há milhares de anos, sendo muitas delas plantas bíblicas, como o acanto, o pinheiro, a palmeira e a açucena. Há também uma grande preponderância de plantas associadas a lendas e histórias da mitologia greco-latina, que o cristianismo incorporou na iconografia sagrada.
Na conferência propõe-se identificar as espécies de flora que surgem em várias obras em azulejos dos séculos XVI ao século XIX em Portugal. Quer destacar algumas destas espécies?
A influência do azulejo mudéjar na cultura portuguesa patenteia a fusão cultural entre a arte islâmica e a arte cristã durante o século XVI, que teve grande impacto nos jardins. As plantas nos azulejos mudéjares são muito estilizadas devido à geometrização das formas, mas surgem, por exemplo, as romãzeiras. No século XIX, nos azulejos do jardim da Quinta Nova da Assunção, em Belas, Sintra, obra do pintor Ferreira das Tabuletas, são incluídas espécies recentemente introduzidas em Portugal, que foram cultivadas no Jardim Botânico da Ajuda, na Tapada das Necessidades e no Jardim da Estrela, como a árvore-ave-do-paraíso (Strelitzia nicolai), originária da África do Sul, e a palmeira-do-paraíso (Howea forsteriana), nativa da Austrália. A localização de Lisboa, no sudoeste da Europa, numa zona de transição entre o Oceano Atlântico e o Mar Mediterrâneo, e entre a África e a Eurásia, faz com que seja uma das capitais europeias com maior biodiversidade arbórea, permitindo a presença ao ar livre tanto de espécies subtropicais, como o jacarandá do Brasil, quanto de espécies nórdicas. Num dos painéis de azulejos desta quinta, há uma alusão à balaustrada do Jardim Botânico da Ajuda (JBA), lugar onde muitas espécies exóticas foram introduzidas e aclimatadas. Estou a coordenar a obra de conservação/restauro da balaustrada do referido jardim, na qualidade de Presidente da Associação dos Amigos do JBA. A balaustrada setecentista do JBA é obra do último arquiteto barroco da Casa Real, Manuel Caetano de Sousa, autor da Biblioteca do Convento de Mafra, e da primeira fase do Palácio da Ajuda.
Esta representação pictórica também reflete a relação de Portugal com outras partidas do mundo, nomeadamente com o Novo Mundo. De que forma se reflete na arte do azulejo?
Na iluminura portuguesa dos séculos XV e XVI, a representação de fauna exótica revela o fascínio pelas novidades trazidas de terras longínquas, como elefantes, rinocerontes e camelos da Índia, dromedários do Norte de África e papagaios e macacos de diversas proveniências, especialmente do Brasil. Em contraste, a representação de plantas trazidas pelos Descobrimentos é ainda pouco frequente na arte do Renascimento. No entanto, a partir dos séculos XVII e até ao século XIX, a representação de flora exótica proveniente de todo o mundo torna-se cada vez mais comum. Alguns exemplos de espécies do Novo Mundo presentes nos azulejos são o girassol (Helianthus annuus) e o lírio (Lilium canadense) da América do Norte; e o cravo-túnico (Tagetes patula), as dálias (Dahlia sp.) e a costela-de-adão (Monstera deliciosa) originárias do México. O fascínio pelo Oriente e a moda da Chinoiserie levaram à representação de várias espécies da Ásia (China e Japão), como a glicínia (Wisteria floribunda), o arbusto-das-borboletas (Buddleja davidii), a peónia (Paeonia sp.) e o pessegueiro (Prunus persica).
Como referiu, há uma linguagem simbólica associada a estas representações. Quer dar-nos alguns exemplos?
A simbologia atribuída a plantas e animais em diferentes períodos histórico-artísticos tem origem na própria natureza desses seres. Por exemplo, a açucena é naturalmente associada a um simbolismo positivo, enquanto o cardo, com os seus espinhos, é tradicionalmente ligado ao sofrimento. Este princípio aplica-se igualmente aos animais: o cão, conhecido pela sua grande lealdade ao ser humano, é um símbolo de fidelidade; por outro lado, a serpente, devido ao perigo da sua mordedura venenosa, representa o perigo e o mal, um significado que é reforçado no livro do Génesis. Assim, podemos ver a natureza como uma linguagem simbólica, onde plantas e animais transmitem mensagens. No contexto da iconografia cristã, esta linguagem foi amplamente utilizada para difundir mensagens evangelizadoras.
Qual o estado de conservação deste património azulejar?
Tenho estudado especialmente os conjuntos azulejares inseridos em jardins históricos, estando, por isso, na maior parte das vezes ao ar livre. Alguns deles têm cerca de 500 anos e estão sujeitos a um maior desgaste do que aqueles que se encontram no interior de palácios, conventos, igrejas, entre outros. O azulejo possui uma resiliência extraordinária, como poucos materiais o possuem. Por ser uma marca identitária nacional, os azulejos continuam a ser utilizados em obras contemporâneas. Um dos principais problemas é que os conjuntos azulejares históricos já não estão in situ, no seu contexto original, e dispostos na composição da narrativa iconográfica imaginada pelos artistas. Muitos azulejos foram roubados e vandalizados porque estavam em conjuntos edificados em ruína ou abandonados. Não basta classificar em termos patrimoniais um conjunto azulejar; deve ser classificado o edifício e o jardim onde se inserem como um todo. Sugiro a leitura do livro Os Próximos 10 Anos do Património Cultural em Portugal: Tendências, onde sou coautora e faço uma reflexão sobre o futuro do nosso património paisagístico. Procuro contribuir para que os futuros profissionais defendam a causa da salvaguarda dos jardins históricos e dos seus conjuntos azulejares.
Créditos da foto: Sónia Talhé Azambuja, Câmara Municipal de Sintra
Acesso à conferência:
ID Reunião: 94839946250
O ciclo de conferências “A Arte do Azulejo em Portugal” prossegue a 5 de junho (18.00 horas) com o tema “O Azulejo e os Fingimentos Cerâmicos”, com a presença do investigador Vítor Serrão.
Onde visitar painéis de azulejos notáveis com representações de flora.
Museu Nacional do Azulejo, Lisboa (coleção que abrange 500 anos de azulejo em Portugal)
Palácio Nacional de Sintra (século XVI)
Quinta da Bacalhoa, Azeitão (século XVI)
Jardim e Palácio Fronteira, Lisboa (século XVII)
Jardins do Palácio Nacional de Queluz (século XVIII)
Quinta dos Azulejos (atual Colégio Manuel Bernardes), Lisboa (século XVIII)
Quinta Nova da Assunção, Belas, Sintra (século XIX)
Capela das Almas (Santa Catarina), Porto (século XVIII)
Sé Catedral, Braga (século XVIII)
Jardim de Santa Cruz (Jardim da Sereia), Coimbra (século XVIII)
Paço Ducal, Viça Viçosa (séculos XVI-XVII)
Convento do Espinheiro, Évora (século XVIII)
Convento de São Paulo da Serra d’Ossa (atual Hotel-Museu Convento de São Paulo), Aldeia da Serra, Redondo (século XVIII)
Igreja de São Lourenço, Almancil (século XVIII)
Jardim do Palácio de Estoi, Faro (século XIX)
Capela de Nossa Senhora da Nazaré, Funchal, Madeira (século XVIII)
Igreja de Nossa Senhora da Guia (Museu de Angra), Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, Açores (século XVIII)
Mais informação em Rotas dos Jardins Históricos da Associação Portuguesa de Jardins Históricos.