Pode dizer-se, sem exagero, que a história do cinema contém um imenso capítulo de títulos das mais variadas origens que talvez pudesse exibir a designação sugestiva de ‘Os seres humanos segundo Georges Simenon’. De facto, o escritor belga (falecido em 1989, contava 86 anos), além de ser um dos mais traduzidos autores do espaço francófono, é também um recordista de adaptações cinematográficas (mais de 70 filmes) e televisivas (perto de quatro centenas de produções). A Morte de Belle, tendo como base um romance de 1952, surge agora na sua segunda versão, com assinatura de Benoît Jacquot — a primeira, datada de 1961, foi realizada por Édouard Molinaro.A nova adaptação transfere a ação para o tempo presente (e de uma pequena cidade do estado de Nova Iorque para a região de Essone, a sul de Paris), embora conservando as linhas essenciais do enigma encenado. Assim, tudo acontece em torno de Pierre (Guillaume Canet), casado com Cléa (Charlotte Gainsbourg). São eles que acolhem em sua casa a personagem de Belle. Em boa verdade, Belle quase não chega a existir como personagem ativa, já que é a sua morte que vai desencadear a deriva trágica dos acontecimentos. Ou seja: ela aparece morta na própria habitação do casal, numa altura em que apenas Pierre estava em casa — de forma no mínimo desconcertante, Pierre diz que não se apercebeu de nada...Não é simples explicar o misto de estranheza e assombramento que o filme vai expondo e intensificando, quanto mais não seja porque importa não pôr em causa a possibilidade de o espetador ir descobrindo as peripécias que se vão acumulando. Seja como for, reencontramos aqui esse poder narrativo, alimentado por infinitas ambiguidades emocionais, com que a escrita de Simenon tem suscitado as mais distintas adaptações. Para nos ficarmos por alguns dos exemplos mais elaborados, podemos lembrar as duas versões de O Homem de Londres, assinadas por Henri Decoin e Béla Tarr (1943 e 2007, respetivamente), O Relojoeiro (1974) de Bertrand Tavernier, Os Fantasmas do Estrangulador (1982), de Claude Chabrol, O Quarto Azul (2014), de Mathieu Amalric, ou Maigret e a Rapariga Morta (2022), de Patrice Leconte.Para lá do desenvolvimento insólito da intriga, sobretudo no seu arfante capítulo final, importa sublinhar a eficácia dramática de um dispositivo intimamente enraizado na visão social e moral do próprio Simenon. Nesta perspetiva, nenhum detalhe é secundário ou banalmente decorativo. Daí o valor fundamental das contribuições de Caroline Champetier, diretora de fotografia, e Bruno Coulais, compositor da banda sonora original — o que vemos e ouvimos envolve o sentido (ou o sem sentido) das coisas do mundo.