Com a estreia do filme A Memória do Cheiro das Coisas, de António Ferreira, reencontramos as componentes de um domínio temático cujas convulsões não se esgotam no território específico do cinema português. Que é como quem diz: a abordagem - a começar pela organização crítica de memórias - da Guerra Colonial está longe de ser uma questão exclusiva dos filmes que se fazem (ou não fazem), existindo, afinal, como um novelo de factos e fantasmas, histórias individuais e narrativas coletivas, transversal a todos os domínios da sociedade portuguesa, da intimidade das famílias até à cena política.Daí o mérito simples, mas essencial, de A Memória do Cheiro das Coisas. O filme opta por uma narrativa austera que se demarca dos lugares-comuns políticos e televisivos com que, por vezes, o passado colonial de Portugal é encenado. Assim, a figura central de Arménio, ex-combatente da Guerra Colonial que, com enorme relutância, começa a viver num lar da terceira idade, nunca surge como “símbolo” do que quer que seja. O que mais conta é a irredutibilidade da própria personagem: não é uma vítima a suscitar qualquer forma obscena de piedade, mas também não é um herói que, supostamente, esgote e ilumine a teia de problemas que a sua existência reflete - por maioria de razão, também não é uma “vítima-herói”.A convivência de Arménio com Hermínia, uma auxiliar negra do lar em que decorre a ação, define o principal polo dramático do filme. Nessa relação inesperada (para Arménio), o assombramento da guerra coexiste com a crueza do presente, revelando um espaço afetivo, recheado de contradições mas talvez redentor, em que, no limite, cada ser humano talvez consiga, através do outro, descobrir um pouco mais de si próprio.Há em A Memória do Cheiro das Coisas uma singeleza dramática que importa não empolar. Não se trata, entenda-se, de eleger o filme como “protótipo” de qualquer abordagem da nossa Guerra Colonial. Trata-se, isso sim, de lembrar que há formas narrativas capazes de lidar com a história do nosso século XX sem ceder ao determinismo moralista de algumas ficções de raiz televisiva. Como? Reencontrando, por exemplo, a singularidade dos destinos individuais.Escusado será dizer que tal cruzamento de emoção e distanciação deve muito da sua eficácia ao trabalho de composição de José Martins e Mina Andala, respetivamente como Arménio e Hermínia (ele foi recentemente distinguido com o prémio de melhor ator no Festival Internacional de Cinema de Xangai). O minimalismo das suas presenças envolve também uma pequena lição de humildade narrativa. .'Balada de um Pequeno Jogador'. O brilho das imagens e a sua retórica .'O Último Suspiro'. Como falar sobre o cancro?