“A linguagem do jazz é algo que tem uma exigência muito idêntica à linguagem da música clássica”

“A linguagem do jazz é algo que tem uma exigência muito idêntica à linguagem da música clássica”

Cantora portuguesa Maria Mendes, já nomeada para Grammy, faz esta quinta-feira a estreia em concertos em Espanha, no Festival Ibérico de Música de Badajoz. Apresenta o disco 'Saudade, Colour of Love'.
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Como portuguesa, como é que olha para esta estreia, finalmente, em Espanha, como artista. E logo aqui ao lado, em Badajoz?

Estou muito desejosa deste acontecimento, e claro que é sempre especial, quando um artista tem a oportunidade de ir a um novo lugar, vamos assim dizer, a um novo mercado. Conheço bem Espanha, mas como turista, e estou muito grata por esta oportunidade. Independentemente da popularidade que tenho no jazz internacional e onde vou, tenho uma gratidão imensa pelas pessoas que me convidam para festivais e concertos. Porque há uma panóplia gigante de artistas com imensa qualidade, e quando nos dão esta oportunidade, é sempre um momento muito mágico, de uma responsabilidade imensa, e de uma alegria imensa, para celebrar a música ao vivo. Portanto, estou looking forward para esta oportunidade de levar Portugal, ao meu jeito de jazz, a um público que também percebe muito bem o português. Por causa da questão da fronteira. Portanto, estaremos em casa, com certeza.

Sendo a Maria uma cantora de jazz, embora com incursões no fado, não receia que os espanhóis vão estar à espera de que, por ser uma portuguesa, seja uma fadista? Não há esse quase preconceito, essa expectativa, quando atua perante audiências fora de Portugal?

É possível que haja, e também uma das razões de eu ter começado com este projeto do fado-jazz, foi precisamente por essa questão. Já estou com 25 anos de carreira musical. Comecei a trabalhar, a ganhar dinheiro com a música, desde os meus 14. E, em tantos países em que dei concertos, quase todos, havia sempre um momento na parte do encore, no final do concerto, especialmente no Brasil, em que atiravam em grito “canta um fado”.

Ou seja, uma portuguesa pode estar a cantar em inglês, jazz, mas...

Todos os meus discos são assumidamente jazz, eu improviso e não há nada de fado, de sonoridade. A única coisa que fiz, nestes meus últimos dois discos - eu tenho quatro, estou a trabalhar num quinto - foi um repertório em que estou a cantar português, estou a cantar fados, melodias conhecidas de todos, mas mesmo assim as melodias, pela forma dos arranjos musicais que eu dei, às vezes o público, quando está a cantar comigo perde-se um pouco. Porque, de repente, a melodia e a harmonia levam um seguimento muito inusitado, gosto de dizer especial. Foi por essa mesma razão, há anos e anos atrás, a cantar em inglês - eu sempre tive discos bilingues, portanto, às vezes cantava em português canções da minha autoria -, e então atiravam-me um “canta um fado”, e eu brincava muitas vezes ao microfone a dizer, “eu sou feliz demais para cantar fado”. Inclusive, há muitos anos, houve uma entrevista para um jornal, em que a manchete era mesmo: “Sou feliz demais para cantar fado.” O destino é muito interessante, não é? Prega-nos partidas, e passaram-se dez anos, e cá estou eu a cantar fado.

Mas não a incomoda esse preconceito?

Para ser sincera, às vezes sim, porque é altamente redutor. Nós, além do fado, temos música alentejana, temos música pop, e tudo o mais, de extrema qualidade. E há a música popular portuguesa. O cancioneiro português, Zeca Afonso, e por aí fora, não é nada fado. É muito redutor, e por isso aborrece-me, mas eu também me apercebi, enquanto expat a morar fora de Portugal já há mais de 15 anos, que também eu própria sofria dessa redução de outros países, neste caso da Holanda. No início era redutora em algumas questões do país. Portanto, uma pessoa vai aprendendo, vai ganhando mundo, e apercebi-me de que, se não posso lutar contra eles, junto-me a eles.

Percebo essa frase em que diz que nós, portugueses, associamos fado a tristeza, mas o que pergunto é se, como artista, como cantora, se sentiu à vontade nesse salto para o fado? Ou seja, há sempre aquelas comparações com os grandes nomes, como a Amália ou, hoje em dia, a Mariza. Para alguém que canta jazz, sentiu que estava a dar um salto no escuro, ou foi logo convicta de que lhe correria bem?

Eu fiz muito convicta, porque, primeiro de tudo, eu não tenho nenhuma aspiração a ser cantora de fado. Não tenciono, não canto dessa forma, a minha formação foi música clássica por dez anos, e depois formei-me mais cinco anos em jazz. Portanto, eu sou escolástica, sei aquilo que faço e faço-o com enorme orgulho, porque também tenho um lado científico associado à questão, e não tenho pretensão de ser cantora de fado. Portanto, eu nem sequer estou incluída no grupo dos fadistas e se alguém alguma vez tiver essa audácia de comparação, é problema dessa pessoa. Eu sou cantora de jazz, assumidamente, escolhi fazer uma coisa que nós, jazzistas, fazemos, que é pegar em standards de jazz. Isto é, pegamos no cancioneiro americano, trabalhamos as canções, damos a nossa roupagem e trazemo-la cá para fora, é o que se ouve Sinatra a fazer, a Ella Fitzgerald, tantos e tantos mais, nos tempos atuais, o próprio Michael Bublé a cantar canções da Nina Simone e ninguém entra em comparações. A minha lógica foi: por que razão é que eu não posso fazer isto com a música portuguesa, com o cancioneiro português? Portanto, adotei o cancioneiro português ao meu jeito de jazz. E por causa dos arranjos musicais e da própria escolha também dos fados, não há termo de comparação. Sempre que faço este concerto com este repertório, onde quer que esteja, apelo sempre ao público, que ama, a procurar em casa a sonoridade original do fado, quero que ouçam a Amália e percebam que isto que eu estou a oferecer com a orquestra, com a minha banda, é algo muito peculiar, é uma leitura moderna muito minha, que nada de fado tem, a não ser prestar um tributo aos poetas, aos cantores, aos músicos, aos compositores que contribuíram para este legado ainda ter esta entidade tão forte. Portanto, quando comecei a trabalhar este repertório, não fui nunca nesse medo de comparações, mas claro que tive as minhas reticências, porque eu sei que o fado é uma entidade que tem uma força gigantesca, e tem os seus Velhos do Restelo.

Que acham que tudo é sagrado, que não se pode ousar...

Claro, mas de certa forma é. Eu considero a música sagrada, especialmente quando não é uma composição minha, e quando faço um arranjo musical, e isso também vem da escola da música clássica que eu recebi. Sei que temos sempre de respeitar o que o compositor intencionou na partitura. Portanto, eu já faço esse trabalho de extrema responsabilidade e de respeito mesmo.

Neste concerto em Badajoz vai cantar músicas que estão no seu terceiro disco, e também no quarto disco, o Saudade, Colour of Love? Diga-me duas ou três músicas que vai interpretar.

Claro, o Foi Deus, o Tudo Isto é Fado, o Com Que Voz, o Asas Fechadas. O Com Que Voz e o Asas Fechadas foram os que me trouxeram as indicações aos Grammy Latinos e aos Grammy Americanos. Depois tenho o Verdes Anos, que não é fado, mas quis introduzir nesta homenagem que quis prestar, no tributo que eu quis dar ao fado e à música portuguesa. E depois tenho uma ou duas canções de minha autoria. Eu tenho alguns fados modernos. Tenho, por exemplo, o Há Uma Música do Povo, que foi composto para a Mariza. Tenho o E Se Não For Fado, da Mafalda Arnaud. Pronto, é um léxico muito rico, porque também a escolha e a seleção que fiz dos fados, dentro daquilo que lhe falei, do meu lado escolástico, do lado intelectual. Portanto, procurei fados que também me conseguissem potenciar caminhos e diversões na harmonia e na melodia. Portanto, nem todos os fados que são muito celebrados pelos portugueses me permitem, a mim, aquilo que eu quis depois potenciar.

A Maria é uma pessoa que além de cantar, de compor, estuda a música. Por exemplo, e já que estamos a falar de um concerto em Espanha, há poucos dias, fui a um concerto de flamenco. De um grupo da Extremadura. E foi extraordinário. Não só o canto, mas a própria dança. Alguma vez sentiu a possibilidade de uma incursão nessa música espanhola?

Aprendi uma coisa com este projeto que fiz. É nunca dizer não. Portanto, não, mas pode acontecer. Se acontecer, estou cada vez mais a abraçar as possibilidades de crescimento artístico. Acho que a força que tenho, e o respeito dos críticos que tenho a nível internacional, provém muito do meu instrumento da seriedade, e das minhas qualidades enquanto música, compositora, arranjadora e produtora. Portanto, quanto mais projetos extraordinários, num léxico que não é muito óbvio, mais eu cresço enquanto ser humano e enquanto artista. É muito mais fácil alimentar-mo-nos do que se põe e tira da gaveta.

Canta em inglês, e canta em português… Cantar noutras línguas é um desafio? Tem de saber uma língua para cantar?

Falo várias línguas e acredito que com o trabalho exigente a que eu me dou, de não só conhecer a música e perceber donde é que ela vem, e depois também trabalhar a própria fonética da língua, acho que alguém pode fazer um trabalho excecional cantando noutra língua. Repare na ópera. A minha escola foram dez anos de música clássica, eu cantava coisas em alemão, em italiano, sem falar as línguas. Na altura, era bastante jovem e fazia um trabalho linguístico exímio. Portanto, é possível. Claro, nós prestamos um tributo incrível. Não acho que o meu desafio de escolha artística provém de línguas, provém sempre da natureza do que é que a canção, ou a poesia ou, se o conceito me toca, me faz sentir profundamente. E depois, é um trabalho de perceber o que é que encaixa e o que é que flui, para que eu consiga encontrar o meu cunho artístico.

Holandês, fala?

Falo pouco. E consigo fingir bem. Porque, sendo cantora, e também tendo muito este lado de perfeição e de exigência para mim própria, eu consigo fingir muito bem por conta de ter uma fonética muito certeira. Mas falo francês, falo espanhol, falo italiano, inglês, português. Já de alemão, não arranho absolutamente nada, mas trabalhando fonéticas faço um bom trabalho.

Nunca teve a tentação de fazer algo em holandês, já que vive nessa cultura?

Já cantei em holandês. Na televisão, num programa em que qualquer convidado teria de cantar uma canção específica holandesa. Também, interessante, o que potenciou esta ligação de querer fazer alguma coisa com o fado foi um trabalho musical que me foi encomendado num festival em Roterdão, que era eu prestar o tributo a uma canção holandesa e isso fez com que encontrasse uma canção que era muito idêntica ao Barco Negro. Não estou a dizer em questão de sonoridade, mas em questão de história, de texto. E foi precisamente o trabalho do Ketelbinkie, que é essa tal canção holandesa, que depois eu decidi fazer uma fusão com o Barco Negro.

Mas juntou-as e cantou em holandês, é isso?

Essa canção eu depois acabei por fazer de forma instrumentada. Optei por não cantar a letra, mas cantar a melodia com o que nós dizemos no jazz, o vocalize, que é cantar uma canção sem letra. O scat é improvisação, é diferente. O vocalize é cantar a melodia com escolha de gibberish, como muita gente fala, ou com escolha de fonéticas e consonâncias.

Maria, só uma última pergunta. Foi o fascínio pela música que a levou ao jazz, foi a atração pela sociedade americana? Como é que chegou ao jazz?

Foi a questão da liberdade. Não teve nada a ver sequer com a língua inglesa. Eu venho de uma família que não é propriamente de músicos profissionais - os meus avós maternos eram -, mas em casa sempre se ouvia muita música e sempre houve muito este rigor de ouvir música clássica, especialmente. Portanto, eu sei, pelos meus pais, que desde os meus três anos de idade eu dizia que queria ser cantora de ópera. Iniciei estudos musicais num conservatório de música, seriamente, com várias disciplinas musicais ao mesmo tempo que tinha a escola do Ensino Básico e Secundário. Portanto, iniciei com 12 anos e tenho feito música profissionalmente desde esse momento, desde que estudo. E eu estou a contar isto tudo porquê? Porque sempre tive uma disciplina muito grande para querer ser cantora de ópera, estudei com esse propósito e foi numa das tertúlias que eu tive com outros colegas do Conservatório, que eram mais velhos e que eram apaixonados por jazz e por teatro musical, que eu cantei o My Romance e cantei o Over the Rainbow e foi uma sensação indescritível. Foi algo tão prazeroso. Não é que eu não tivesse prazer quando cantava Mozart, porque eu na altura era soprano coloratura. Portanto, eu tinha também um repertório muito específico para cantar e adorava, e continuo a amar ou escutar, já não canto, mas aquilo que eu senti quando cantei o My Romance e o Over the Rainbow foi mesmo extraordinário. E o que é que eu fiz? Fui alimentando, de forma secreta, em casa, a ouvir também discos que tínhamos do Sinatra, do Nat King Cole, da Doris Day, que não é propriamente uma cantora de jazz, mas que fazia os standards de uma forma muito clássica, e fui também ouvindo a Bossa Nova, por ligação da minha família materna, que é brasileira também. Um belo dia disse aos meus pais, quando tinha 17 anos, que queria concluir o curso complementar de Música em Canto Clássico, portanto fazer o último exame de Ópera, mas preparar-me para ir para a ESMAE, a Escola Superior de Música e das Artes do Espectáculo no Porto, nos estudos do Jazz. A minha mãe ficou com o coração partido, mas a minha mãe é a minha maior fã, portanto, depois de passados os meses de aceitação, ficou tudo bem, está tudo bem. Mas foi isso, foi uma transição. E eu, na altura, quando comecei a estudar jazz, que é uma linguagem muito diferente, fui descobrindo muitas coisas, fui arranhando muito no início, mas a linguagem de jazz é algo que tem uma exigência muito idêntica à linguagem da música clássica. Requer estudo, requer seriedade, requer descoberta, e é isso que gosto, é isso que me dá prazer na música. E também, por todas essas questões, o facto de eu ter a força que tenho enquanto instrumentista. Sou uma cantora que consegue fazer muito com a voz, vem desse rigor da música clássica, mas também vem desta descoberta de querer fazer mais com a minha voz, que me permite continuamente ampliar as minhas capacidades musicais. Portanto, no início, quando eu fiz essa ligação para o jazz, eu ainda cantava música clássica, mas deixei de o fazer, por uma questão de respeito, bem como de ter a noção que consigo arranhar, mas para ouvidos não-leigos, não, não. Estou muito feliz dentro daquilo que faço, com o jazz que faço.

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