A KINO faz 20 anos e celebra-os com recomeços
Está de volta a Lisboa, a partir de amanhã, a Mostra de Cinema de Expressão Alemã organizada anualmente pelo Goethe Institut, com produções da Alemanha, Áustria, Suíça e Luxemburgo. A KINO chega à sua 20ª edição com vontade de carregar no botão "reiniciar".
É sob o tema Novos Começos (em alemão,"Neuanfänge") que a KINO regressa ao Cinema São Jorge, em Lisboa, esta quinta-feira. E o que é que se entende por "novos começos"? Qualquer ação, motivada por alguma forma de esperança, que separe um antes e um depois, como se vê logo no filme de abertura, o documentário Quando a Primavera Chegou a Bucha, de Mila Teshaieva e Marcus Lenz, um retrato dos habitantes dessa cidade ucraniana que saram as feridas após a ocupação russa. Mas há mais exemplos de recomeços nesta programação que a partir de dia 9 se transfere para a Cinemateca (até 18 de fevereiro), com um foco especial intitulado História(s) do Cinema Alemão. A completar 20 anos, a KINO convida ainda para uma festa no dia 8, na sua casa habitual, o São Jorge, seguindo depois para outras cidades: Lagos (de 9 a 11 de fevereiro), Coimbra (14 e 15) e Porto (de 2 a 23 de março).
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Quando a Primavera Chegou a Bucha.
De entre os filmes das secções principais, destacamos, desde logo, Os Comuns, de Sophie Linnenbaum (dia 5, 16h30), um objeto curiosíssimo que cruza a metáfora de uma sociedade estratificada com a ideia de The Truman Show - A Vida em Direto (1998), de Peter Weir, o filme em que a personagem de Jim Carrey descobre que toda a sua existência está circunscrita ao cenário de um programa de televisão transmitido 24h por dia... Ora, em Os Comuns, esse cenário é cinematográfico e todas as personagens cumprem o seu lugar numa sociedade liderada pelas "personagens principais". Enquanto secundária, Paula, a protagonista da história, esforça-se para chegar a personagem principal, tal como o seu pai, cuja ausência vai motivar a viagem transgressiva desta jovem às margens do guião, lugar onde ficam as cenas cortadas. O mundo de Os Comuns é como um grande filme, com toda a existência configurada em função dos seus termos específicos: não há memórias, mas sim flashbacks, está-se dentro ou fora do storyline, e em vez de frases normais como "tens andado tão estranha nos últimos dias", diz-se "tens andado tão estranha nas últimas cenas". Um filme super original, capaz de dar coração ao seu próprio conceito, com uma piscadela de olho à fábrica dos sonhos da Hollywood clássica.
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Outro dos títulos criativos desta edição é Framboesas com Mostarda, de Ruth Olshan (dia 4, 16h30), uma sessão para famílias que trata a morte por tu. A heroína aqui é uma adolescente de 13 anos que escreve cartas à falecida mãe, enviando-as através dos mortos. A saber: o pai é agente funerário e ela limita-se a esconder a correspondência nos caixões, antes de estes descerem à terra. É uma fantasia dramática inteligente, que envolve o poder de voar (mediante condições emocionais positivas) e o medo de que uma madrasta possa significar o fim da memória materna. Entre o doce e o amargo - como sinaliza o título -, a tristeza e a alegria, eis uma fita muito simpática, com sensibilidade para o público juvenil.
De referir também Home (dia 8, 19h), o drama de um ex-recluso, em paisagem americana, que regressa a casa e aos seus fantasmas; filme de belas interpretações, nomeadamente de Kathy Bates, e com a assinatura da alemã Franka Potente, atriz da obra de culto Corre, Lola, Corre (1998), que será exibida conjuntamente.
Já nas sessões da Cinemateca, com uma mão cheia de boas propostas à volta da história do cinema alemão, destaque para Os Irmãos Skladanowsky (1996), de Wim Wenders, um olhar centrado na versão alemã dos irmãos Lumière, e De Caligari a Hitler (2015), de Rüdiger Suchsland, documentário sobre o cinema como barómetro dos tempos...
Entrevista a Mila Teshaieva e Marcus Lenz
"Os ucranianos encontram momentos de luz mesmo nas situações obscuras"
Quando a Primavera Chegou a Bucha, da ucraniana Mila Teshaieva e do alemão Marcus Lenz, é o título de abertura da 20ª edição da KINO. Um documentário que capta o "renascer das cinzas" após a tragédia da ocupação de Bucha pelos soldados russos - para ver nos dias 2 e 3, no Cinema São Jorge, com a presença dos realizadores na segunda sessão. Mila Teshaieva e Marcus Lenz responderam às perguntas do DN.
Este filme nasceu de um impulso ou, tendo em conta o contexto da guerra, já tinham colocado a hipótese de filmar o que estava a acontecer, em qualquer cidade ucraniana?
Mila Teshaieva: Eu fui de Berlim para a Ucrânia no terceiro dia da guerra, com um colete à prova de balas e um capacete, a conduzir um carro velho e desgastado, juntamente com outras duas mulheres. Queria estar na minha terra natal no momento em que esta era atacada por um exército estrangeiro. Então, fui para Kiev e comecei a fotografar na altura em que as tropas russas tentaram cercar a cidade. Fotografei também os habitantes de Irpin quando tentavam fugir pelo único pequeno caminho de madeira que restava sob a ponte destruída, e fui das primeiras pessoas a entrar em Bucha depois de ser libertada. Foi nesse momento que comecei a filmar: a hora zero após os crimes de guerra e a ocupação. Senti que o que estava a acontecer devia ser registado em imagens em movimento - as imagens estáticas não poderiam transmitir os sons e os cheiros da morte. Senti que estava a viver um momento da história que será discutido e debatido pelas próximas gerações, e queria preservá-lo. Pedi ao Marcus que viesse à Ucrânia para me ajudar e começámos a filmar, sem saber se viria a ser um filme.
Como foi a dimensão prática de realizar um documentário nesta circunstância tão delicada?
Marcus Lenz: Filmámos com uma equipa muito pequena, três elementos, e aproximámo-nos das pessoas, passámos muito tempo com elas. Essa parte foi fácil porque a Mila é uma conterrânea que voltou para apoiar o seu povo. Isso abriu-nos portas. Mas claro que foi um trabalho muito intenso e exaustivo. Era nossa obrigação, nosso dever registar exatamente o que estava a acontecer. Começámos a fazer o documentário sem qualquer financiamento, porque achámos que era crucial reter os factos o mais rápido possível, pela pura necessidade de os dar a ver ao mundo.
Por aquilo que mostram, e também pelo que não mostram, o vosso trabalho revela um grande respeito pela tragédia. Falem-me desta decisão de ocultar certas imagens.
ML: Queríamos que os espectadores vissem a devastação que os russos deixaram para trás - os prédios queimados pelos bombardeamentos e as marcas nas estradas e na terra. Claro que os habitantes vivem as suas vidas quotidianas, mas pode ler-se o sofrimento e o trauma nos seus rostos pálidos e enrugados. Ou seja, decidimos mostrar a violência de forma indireta, interessava-nos a vida que se segue depois da violência. É aí que se sente a profundidade das feridas.
Para além do que é visível ao espectador, como é que traduzem, do ponto de vista mais íntimo, o sentimento de estar em Bucha, enquanto cidade praticamente em ruínas?
MT: Surreal, não conseguia imaginar que veria tanto choque, dor e destruição... Não se consegue entender como é que isto é possível no século XXI. Qualquer pessoa que o tenha testemunhado, nunca vai esquecer.
No filme, há um pouco de música, um pouco de romance, um pouco de esperança, aqui e ali, uma árvore em flor... Mila, como ucraniana, acha que esta "luminosidade" vai resistir, apesar de tudo? A pergunta é também para o Marcus, claro.
MT: Sim, absolutamente. Acho que os ucranianos são pessoas que amam a vida. Encontram momentos de luz mesmo na maioria das situações obscuras. Dou um exemplo: uma mulher que perdeu o filho, e que estava ao pé do seu túmulo, preocupou-se que eu pudesse ter fome e trouxe-me um pouco de comida e café quente. Outra, numa situação semelhante, disse-me: "Em breve tudo estará a florescer"... Não consigo imaginar nenhum momento sem um vislumbre de fé. O filme mostra como o povo de Bucha tenta trazer de volta a vida e limpar o caos deixado pelo exército russo. Era absolutamente uma terra morta depois da libertação. E foi esse processo de passagem da morte para a vida, do inverno para a primavera, que deu ao documentário uma estrutura natural.
ML: Obviamente, Bucha não está limpa. Obviamente, não há primavera agora, mas o que realmente me impressiona é o otimismo dos ucranianos. Neste momento de desastre mais profundo, há esperança e há força para reconstruir o país novamente.
MT: Para mim, o importante foi quebrar os clichés sobre a guerra. As pessoas quando ouvem "Bucha" esperam ver um grande drama. Mas o que veem no documentário são pessoas incrivelmente fortes, resilientes, a reconstruir as suas vidas. É surpreendente e muito comovente, na verdade. Tocou-me realmente o facto de o espírito humano ser muito mais poderoso do que qualquer guerra ou morte... Mas apesar do otimismo, acho que o trauma causado pelos 35 dias da ocupação russa perdurará por gerações.
dnot@dn.pt
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