Uma criança que espreita os adultos. Quase sempre, os filmes baseados nesta premissa conseguem trazer algo de puro e refrescante ao ângulo do realizador: são filmes que estabelecem o olhar infantil como a lente mais justa para abordar o presente, ou um passado, tendendo a privilegiar o “lugar secreto” da perceção. Assim se poderá caracterizar A Ilha Vermelha, filme semiautobiográfico de Robin Campillo, que confia aos inocentes olhos azuis de um menino de dez anos a crónica de uma vivência da recém-independente Madagáscar, no início da década de 1970; uma crónica só possível de converter em imagens evocativas por esse lado da curiosidade pueril, que põe a imaginação a dialogar com uma leitura íntima da realidade, longe da cegueira humana dos adultos. .Thomas (o debutante Charlie Vauselle) é então o garoto que tudo vê e assimila no ambiente de uma base militar francesa, onde a sua família desfruta – tal como as outras famílias brancas expatriadas – do estilo de vida expansivo numa ilha paradisíaca, com churrascos e festas, tagarelice e tédio, a construírem memórias de convívio indissociáveis de uma flagrante tensão sexual. O pai militar do menino surge aqui como o exemplo discretamente incómodo do homem que carrega em si o racismo latente e uma postura de macho ferido que tenta o tempo todo corresponder ao páter-famílias ideal, para isso trazendo presentes para casa que podem tomar a forma de crocodilos bebés... Mas esta é apenas a dimensão doméstica daquele quotidiano. .O que os olhos da criança registam será, por sua vez, amplificado pelos olhos de uma menina vietnamita, que acaba por se tornar a sua companheira de aventuras, desde logo enquanto apreciadora de Fantômette, a heroína da série de livros que solta a imaginação de Thomas. O que nos leva às vinhetas oníricas, espécie de trechos animados com as façanhas da pequena justiceira mascarada, que estão espalhados pelo filme num equilíbrio frágil entre a fantasia juvenil e a pulsação histórica – só na parte final de A Ilha Vermelha ganharão densidade. .Até lá, sem prejuízo, o realizador do famoso 120 Batimentos por Minuto consegue manter o retrato envolvente e incisivo na zona de segurança que são esses olhos de quem observa, seja pelo buraco do esconderijo no jardim ou debaixo da mesa, uma realidade incompreensível às ideias mas legível através da urgência dos corpos, ou de uma sensação pesada na atmosfera. .Com uma ternura prudente, que nunca romantiza a questão política da memória (pelo contrário), A Ilha Vermelha explora os resquícios do império colonial francês pela linha fragmentada das impressões de um lugar e da sua agitação interna. Como se a câmara de Campillo assumisse o “discurso” daquele maravilhoso movimento espontâneo das crianças que desatam a pedalar nas suas bicicletas, oferecendo uma vista geral da ilha: não se sabe o que as impeliu, mas há uma corrente viva nessa mobilidade cúmplice.