“A escravatura era um fenómeno universal ao qual ninguém pensava opor-se”

“A escravatura era um fenómeno universal ao qual ninguém pensava opor-se”

Esquadrinhar a influência social de várias comunidades e retratar certas épocas da capital portuguesa tem sido a ocupação do historiador Sérgio Luís de Carvalho nos últimos anos, de que resultou uma série de trabalhos que têm na palavra Lisboa a sua chave: a Lisboa Nazi, a Judaica, a Árabe e a Maldita.
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Lisboa Africana é o quinto volume de uma investigação alargada sobre as influências que têm deixado marca na capital, desta vez com o foco nas várias gerações de habitantes vindos do continente africano e que há séculos espantavam os visitantes devido à diversidade de cor de pele com que se deparavam nas ruas de Lisboa. O percurso do livro começa nesses tempos antigos e vem até bem próximo da atualidade, época em que as questões se tornaram bem mais complexas e geram debates, muitas vezes apaixonados, noutras como exemplo da necessidade de uma consciência histórica ao passado.

Logo na Introdução, Sérgio Luís de Carvalho faz a pergunta “O que é ser africano em Lisboa?” Questão com respostas cujo sentido reproduzem o labirinto das antigas ruas de Lisboa, quase desaparecidas entretanto, e onde uma imigração, inicialmente forçada e mais recentemente voluntária, alterou em muito o perfil de quem ficou e de quem veio para ficar. Em pleno século XXI, a questão não perdeu a importância, como o autor refere: “Creio que as questões identitárias num mundo global e uniformizador, colocam-se cada vez com mais acuidade. A pulsão uniformizadora que percorre o mundo gera resistências culturais que visam a recusa de um modelo social, político, cultural e mental tendencialmente único. Basta observarmos os movimentos políticos que se afirmam um pouco por todo o lado, em que tais questões identitárias são centrais - às vezes de forma negativa porque assente em discursos de ódio. Deve-se conjugar a diversidade com a unidade, pois esse é o único meio de não destruirmos as nossas sociedades e de viver em paz.”

É impossível abordar este Lisboa Africana sem esclarecer com o historiador a preponderância de racismo em grande parte da sociedade portuguesa, tema que tem regressado com força ao debate público. Para Sérgio Luís de Carvalho, a questão não deixa de estar presente, podendo dar-se como exemplo um entre os muitos capítulos onde a questão é abordada a nível histórico, Os Novos Tempos Coloniais. Questionado sobre a existência de um sentimento racista nacional, diz: “Há muito que a noção iluminista da perfetibilidade progressiva do espírito humano está desacreditada. A instrução e a educação, bases de qualquer sociedade civilizada, não destrói os piores fantasmas da nossa alma. A irracionalidade existe e persiste sempre. Até mais ver, é insistir na educação e na informação.”

Sérgio Luís de Carvalho conta a história da presença da população africana na cidade de Lisboa.

No que respeita a este Lisboa Africana, não se pode ignorar a ampla promoção do comércio de escravos africanos por Portugal. Uma narrativa histórica como esta e num tempo em que o passado está a ser revolvido sob outros olhares, criou a necessidade de novos padrões de análise? Sérgio Luís de Carvalho nega: “O historiador sabe bem com que linhas se cose e quais os seus instrumentos de análise e de crítica. Sabe como não cair em anacronismos e não aplicar ao passado noções que são modernas. Portugal promoveu o comércio de escravos, é certo. Afinal, todas as nações têm, na sua História, zonas de luz e de sombra. Mas a escravatura era um fenómeno universal ao qual ninguém pensava opor-se. Existia. Sempre fora assim, sempre «seria assim». No fundo, Portugal foi pioneiro porque chegou primeiro à «fonte dos escravos»: África. Também em África a escravatura era endémica, como em todo o lado. Uma coisa é condenar a escravatura, que ainda subsiste - às vezes com outro nome; outra coisa é aplicar ao passado noções e princípios que não existiam nessa altura.”

O objetivo do historiador neste novo volume é o de continuar a retratar os pilares de uma cidade, e Lisboa Africana não foge aos parâmetros que fizeram nascer os volumes anteriores. O projeto inicial não passava por uma série sucessiva de investigações como veio a acontecer: “O primeiro volume, Lisboa Nazi, foi fruto de vários anos de investigação e nunca pensei na hipótese de ser o «fundador» de uma coleção. A boa receção do livro, fez com que se pusesse a ideia de continuação e o segundo volume «teria de ser» sobre Lisboa Judaica. A seguir só poderia vir Lisboa Árabe. Desde então, a escolha do tema assenta em alguns princípios basilares: a abrangência das temáticas, a sua permanência ao longo dos tempos em vez de ser um fenómeno localizado numa época, a sua transversalidade social e a sua atualidade.”

Quanto às preferências dos leitores, Sérgio Luís de Carvalho não encontra uma diferença de maior: “De um modo geral, a boa aceitação é recorrente e tiveram reedições. No fundo, a coleção vale como um todo.” Muito ilustrado, com bastantes destaques, cronologias, uma prosa inteligente e repleta de detalhes, Lisboa Africana junta-se a uma coleção cada vez mais imprescindível para conhecer a cidade e a sua história

Lisboa Africana
Sérgio Luís de Carvalho
Parsifal
227 páginas
(Apresentação dia 23, pelas 18h00, no Palácio Galveias)

Outras novidades literárias

A LOUCURA DA ÍNDIA

Tem como subtítulo As viagens épicas de Vasco da Gama, o que recentra o objetivo desta investigação intitulada A Última Cruzada [Guerra Santa, em anterior edição] para o seu verdadeiro foco, o de como o navegador abriu uma brecha civilizacional com a viagem à Índia e fez com que a História abandonasse a era Medieval. Começa com a descrição das naus com cruzes carmesins a aparecer no horizonte indiano e termina a justificar o título e a intenção: “uma loucura”.

A ÚLTIMA CRUZADA
Nigel Cliff
D.Quixote
591 páginas

O FIM DA EUROPA MEDIEVAL

Profundo conhecedor da História de Portugal, o investigador procura explicações para a aventura do mar. Sem complexos, como parecem ter os nossos historiadores sobre a época, insere os Descobrimentos num renascentismo nacional e resume a causa desta sua obra numa exigência: “É imperativo olhar mais uma vez para a história da exploração marítima portuguesa”. Não passa ao lado do efeito a muito longo prazo que a então abertura dos canais de comércio irá permitir já em pleno século XXI, quando os países da Ásia os recuperaram para a entrada como protagonistas económicos no mundo.

Navegações
Malyn Newitt
Texto Editores
428 páginas

NAVEGAR É PRECISO

O relato contemporâneo de viagens pelo mar permite fazer comparações, mesmo que ínfimas, quanto ao perigo que as dos Descobrimentos envolviam. Este Diário de Bordo, além de pretender manter a “soberania lusitana sobre as Desertas tão cobiçadas pelos gananciosos vizinhos”, conta o dia-a-dia destas andanças em volta da Madeira por cinco tripulantes e sai-se da leitura a fazer comparações com o de muito antigamente.

À DESCOBERTA DAS ILHAS SELVAGENS
José Pedro Castanheira
Tinta da China
165 páginas

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