A Cura existe e está aberta a todos

Depois de mais de uma década a registar online a memória musical coletiva do país, A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria passa finalmente a ter um espaço físico. Fica em Serpins, uma pequena vila no Concelho da Lousã, que este fim de semana vai estar em festa.

Foi com um vídeo de Jorge Cruz, fundador dos já extintos Diabo na Cruz, a tocar uma guitarra algures em Lisboa, que em janeiro de 2011 o documentarista e realizador Tiago Pereira deu início ao projeto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (MPGDP). Desde então, percorreu o país de lés a lés, sempre com o mesmo objetivo de recolher e divulgar as mais variadas tradições musicais e orais portuguesas, mas especialmente as pessoas que ainda as mantêm vivas.

Começou por ser um canal de vídeo na plataforma Vimeo, saltou da internet para a rádio e depois também para a televisão, mas faltava um espaço físico, que perpetuasse esta memória, agregando as pessoas à sua volta. Afinal foi sempre por elas, que Tiago Pereira abraçou esta espécie de missão de vida, agora materializada numa sede que além de lugar de pesquisa e divulgação, é também sala de espetáculos e até taberna. Fica em Serpins, uma pequena freguesia do concelho da Lousã, simbolicamente situada "mais ou menos a meio do país, à mesma distância do Algarve e de Trás-os-Montes, para onde Tiago Pereira se mudou pouco tempo antes da pandemia.

"Um lugar onde ainda há resquícios de uma vida em comunidade que há muito se perdeu nas cidades grandes", explica ao DN, a poucos dias da abertura da CURA, a sede física da MPGDP, marcada para esta sexta-feira, mas cuja festa se irá prolongar fim de semana fora, como muita música, comes e bebes e pessoas vindas de todo o país, que vão encher e animar as ruas da vila como há muito não se via.

"Mais que um sonho ou um objetivo, esta sede é uma necessidade", explica Tiago, passando em seguida "a contextualizar" a lógica da cura. Para isso recua no tempo, até ao período da pandemia, quando, devido às normas sanitárias em vigor, "era obrigado a filmar as pessoas à janela", sem se poder aproximar delas. Numa dessas sessões, "uma senhora teve um problema de saúde e acabou por falecer", naquele que terá sido um dos momentos mais difíceis da já longa história da MPGDP.

"Foi algo que mexeu muito comigo, por toda a tragédia pessoal, mas também porque se já tinha a sensação de estar sempre a filmar o fim das coisas, esse momento acabou por se transformar na pior metáfora disso mesmo. E essa finitude é de facto um dos grandes problemas do interior", avisa.

O período de reflexão que se seguiu a este incidente conduziu-o para uma única conclusão: "percebi que não queria fazer parte dessa doença, mas sim ser a cura" e foi assim que surgiu o nome para a sede, cujo principal objetivo, mais do que o documental ou museológico, passa por colocar "as pessoas juntas, voltando atrás a um tempo de encontros cada vez mais raro e precioso. E se a MPGDP quer ser esse ponto de encontro não pode ser só algo online, precisa de um espaço físico onde seja possível recriar esse conceito de comunidade, onde se possa apenas estar. Lá está, era uma necessidade", sublinha Tiago.

O nome Cura "significa a ação do tempo e celebra todo o nosso trabalho de registo audiovisual da memória coletiva portuguesa dos últimos 100 anos, que a MPGDP vem gravando desde 2011, através de canções, músicas, práticas religiosas, artesãos e histórias de vida, contadas cantadas e tocadas sempre na primeira pessoa, a cidadãos nascidos entre 1920 e 1990. São mais de sete mil vídeos que podem ser agora vistos e ouvidos no mesmo espaço, em Serpins. "Esta é também uma forma de tentarmos pôr um fim a um eventual conflito com os estudos etnomusicais, pois muitas vezes sou acusado de gravar sem qualquer método científico e desta forma pode-se criar um método e estudar a partir dali, porque há um arquivo imenso que não está online e passa a estar disponível num único local", realça.

Serão também organizados debates, oficinas de saberes e haverá "uma programação regular e fluida", sempre com o foco na "humanização da cultura oral portuguesa". A Cura terá também sempre em destaque uma montra de artesãos e no local vai também nascer a Tasca Digital, um espaço com chão de azulejo, um balcão, mesas de taberna e uma mesa digital interativa, onde se pode assistir aos vídeos do espólio da MPGDP enquanto se provam vinhos e queijos de várias regiões do país.

"Apesar de continuar a haver sempre uma tradição oral, esta vai passar a acabar mais depressa, porque a informação também é cada vez mais rápida. E mesmo com uma certa regeneração, feita através de alguns jovens que estão a voltar para o interior, em 2035 já não haverá nada disto, porque as pessoas que detêm este saber vão desaparecer fisicamente e vai chegar um momento em que tudo vai estar uniformizado", alerta Tiago Pereira. Portanto, "mais que a urgência em registar e gravar músicas, é importante estar com as pessoas, para combater o idadismo e mostrar-lhes que continuam a ser importantes", defende.

Tal como vai acontecer já este fim de semana, na festa de inauguração da Cura, com início marcado para ao fim da tarde de sexta-feira, com uma atuação do Coro da Cura, "um coletivo formado por gente que canta apenas porque sim", dirigido pelo maestro e compositor Nuno Costa, seguindo-se, pelas 21.00 horas, um concerto do projeto Rua das Pretas, no Miradouro da casa Cortez.

No dia seguinte, sábado, terá lugar uma Parada Musical com mais de 300 músicos vindos do país todo, do Alentejo a Trás-os-Montes, entre as 12h e as 14h, que percorrerá as ruas da vila em direção à praia fluvial da Senhora da Graça, onde terá lugar um mega-piquenique organizado pela Comida Portuguesa a Gostar dela Própria, com a presença dos chefs André Magalhães (Taberna da Rua das Flores, Lisboa) e José Júlio Vintém (Tomba Lobos, Portalegre) e continuando a festa ao som do DJ Maryzka. Por último, no domingo, haverá um passeio pelas memórias de Serpins, após o qual será inaugurada a Tasca Digital da CURA, com diversos concertos e conversas ao longo de todo o dia.

dnot@dn.pt

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