A Baleia - Um ator, acima de tudo
Aplaudido como o grande regresso de Brendan Fraser, A Baleia pode significar um Óscar para o seu magnânimo intérprete. Uma pequena odisseia emocional numa sala de estar, filmada com precisão por Darren Aronofsky.
Com a aproximação da cerimónia dos Óscares e a recente estatueta ganha por Brendan Fraser nos Prémios SAG, para além da mesma distinção nos Critics Choice Awards, começa-se a especular sobre a possibilidade de o ator americano vir a obter a honra máxima da sua carreira. Uma carreira não propriamente de grande quilate, quase sempre reduzida à série de filmes A Múmia, e onde a diversidade nunca foi muito notada, embora tenha as suas pérolas escondidas. Quem se lembra do Fraser de Deuses e Monstros (1998) ou Colisão (2004)? No fundo, é esse ator de nuances dramáticas que Darren Aronofsky resgata através de A Baleia, puxando-o das águas da sua imagem comercial para revelar alguém capaz de concentrar a ação de um filme na sua expressão corporal, mesmo que debaixo de uma camada adiposa de "corpo" fabricado.
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O desafio de The Whale começa nesse assumir da importância do ator: Brendan Fraser interpreta Charlie, um homem gay com obesidade mórbida que nos dias que lhe restam tenta despertar na sua única filha (Sadie Sink) alguma forma de afeição, apesar da resistência da adolescente rebelde às investidas persuasivas e benevolentes do pai. Ela acaba por ser a segunda personagem mais relevante neste retrato humano, por simbolizar a redenção que o protagonista procura, mas a enfermeira interpretada por Hong Chau (também nomeada para Óscar), alguém que visita diariamente Charlie para averiguar o seu estado de saúde, é daquelas secundárias que dominam o cenário só com a presença forte e desembaraçada, tal como a ilustre Thelma Ritter o fazia no cinema clássico de Hollywood... Há ainda um jovem missionário que se mete ao barulho, mas aqui tudo anda à volta do confinamento obsessivo de Charlie/Fraser, esse professor de Inglês que dá aulas online escondendo dos alunos a sua aparência física com a desculpa falsa de uma webcam avariada.
Nestes tempos de discursos acesos sobre a representatividade, a personagem de Fraser não escapou a alguns olhares desconfiados, por não se tratar de um ator obeso, nem gay... Enfim, diremos apenas que é um papel impossível de abreviar na experiência de uma condição física (de resto, Fraser fez a sua pesquisa junto de pessoas que sofrem de obesidade), e, acima de tudo, o que salta à vista é a ressurreição simbólica de um ator, à semelhança do que Aronofsky conseguiu fazer com Mickey Rourke em O Wrestler, um dos seus melhores filmes.
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Aliás, o cinema de Aronofsky passa não só pelo desígnio intrínseco de observar os atores num qualquer ponto de exaustão - recorde-se Ellen Burstyn em A Vida Não é um Sonho, Natalie Portman em Cisne Negro ou Jennifer Lawrence no incompreendido Mãe! - como trabalha a ideia do espaço a partir do corpo desses atores/atrizes. Precisamente, Mãe!, o filme anterior do realizador nova-iorquino, com Lawrence fechada num casarão isolado, estabelece uma curiosa afinidade com A Baleia, na medida em que se invertem as dimensões: enquanto a casa de Mãe! é um labirinto de divisões onde a protagonista circula aterrorizada, o apartamento de Charlie é demasiado pequeno para o seu volume corporal, e o próprio formato quadrado da tela (proporção 4:3) confere a desejada sensação de claustrofobia.
Com efeito, Brendan Fraser é um homem-baleia cujos poucos e esforçados movimentos se combinam com a evocação de Moby Dick, o romance de Herman Melville que surge num ensaio lido vezes sem conta pelo protagonista, supostamente escrito por um dos seus estudantes. E esta referência funciona também ao nível das imagens: embora vejamos Charlie sempre sentado no sofá ou numa cadeira de rodas, nos momentos em que se levanta (ou tenta fazê-lo) há uma vibração e imponência aquáticas que traduzem algo da estranha nobreza deste homem. O mesmo homem que noutros momentos podemos ver a devorar sofregamente tudo o que de pouco saudável encontra à mão na cozinha... Darren Aronofsky não quis apenas um ator que lhe desse um olhar luminoso e positivo como aquele que Fraser exibe contra toda a tristeza carregada pela sua personagem - quis também o seu reverso, aquilo que provoca desconforto.
Mas, mais do que isso, e reconhecendo que A Baleia tem as suas fragilidades na passagem do texto teatral autobiográfico de Samuel D. Hunter para o grande ecrã, ao nível do melodrama, o que me parece digno de nota na realização de Aronofsky é o modo como cria uma dinâmica sugestiva dentro daquele apartamento. Charlie configura o ponto energético de toda a psicologia que pulsa na sala de estar - e não há dúvidas de que Fraser encarna essa potência emocional sem se deixar embaraçar pela prótese de gordura -, mas há um pouco mais de cinema para além disso. Como planos que tornam o nosso olhar hipersensível aos detalhes, entre vultos a passarem na janela, que antecipam o toque da campainha, ou a quantidade de objetos acumulados no apartamento, que faz com que o corpo de Charlie se confunda com essa paisagem suja, desengraçada e mais ou menos uniforme na paleta de cores. Um corpo prestes a sucumbir ao estado inanimado da memorabilia à sua volta, mas, antes disso, com uma palavra a dizer sobre a natureza humana e uma hipótese de sarar a alma pela libertação do físico.

dnot@dn.pt
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