O homem e o lugar.
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A "África concreta" de Ruy Duarte de Carvalho

Um filme para lembrar o escritor Ruy Duarte de Carvalho, e o seu amor a África, Os Papéis do Inglês é uma viagem ao coração do deserto do Namibe.
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Foi o escritor de literatura de viagem Paul Theroux quem, evocando o “título do enigmático quadro de Francis Bacon” Estudo para Figuras numa Paisagem, se apropriou dele para intitular o seu próprio livro de ensaios de 2018. Chamou-lhe apenas Figuras numa Paisagem. Uma ideia, uma expressão, que tende a transportar-nos imediatamente para um lugar onde a vastidão desértica sublinha a fragilidade da silhueta humana, mas onde também o corpo se pode fazer apontamento poético, ou comentário vivo numa geografia nua.

Essa mesma ideia vaga parece orientar Os Papéis do Inglês, um filme que põe o seu protagonista “real” a dialogar intimamente com o espaço em volta, antes ainda de interagir com quem o acompanha. Na interpretação justa e despretensiosa de João Pedro Vaz, a presença do escritor, poeta, cineasta e antropólogo Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010) materializa-se pela essência da sua relação com aquele deserto – o deserto do Namibe –, e pela forma como sentia o continente africano no seu todo. Essa “África concreta de que tu, e todo o mundo, tão pouco realizam (...) fora de um imaginário nutrido e viciado por testemunhos e especulações que afinal se ocupam mais do passado europeu do que do africano”, como escreve no romance homónimo aqui adaptado.

A maior virtude, e surpresa, desta realização de Sérgio Graciano vem então da sua capacidade de despojamento, do seu respeito pela verdade poética do autor, que emana da melancolia da terra seca, ou face geológica, e, já agora, do argumento não menos depurado de José Eduardo Agualusa. Se a epopeia nasce da busca pelos papéis de um inglês cuja existência remonta a um segredo qualquer de 1923, essa será apenas uma desculpa para percorrer a paisagem do sul angolano e homenagear serenamente o autor de Vou Lá Visitar Pastores, unindo palavra, corpo e terra em planos que reduzem o lume ao romantismo e refletem uma estética honesta. Aí estará implícita a aspiração do próprio produtor, Paulo Branco, que quis resgatar do esquecimento este amigo e figura literária.

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