"Nasci a 20 de setembro de 1934, frágil e não particularmente bonita, na enfermaria para mães solteiras da Clínica Regina Margherita, em Roma. Como sempre digo, o meu enxoval era uma mala cheia de sabedoria e pobreza.” As palavras de Sophia Loren na autobiografia Yesterday, Today, Tomorrow (título roubado a um dos seus filmes mais famosos) são o espelho da mulher que há não muito tempo reencontrámos num filme da Netflix, Uma Vida à Sua Frente (2020), realizado pelo filho, Edoardo Ponti. Uma mulher que, apesar da provecta idade, preservava um olhar forte, conhecedor, bem desenhado pelo rímel, e uma sensibilidade particular para a pobreza, que veio do berço e se fez sentir em várias personagens - apesar de ser a figura glamorosa de lábios carnudos, decote e ancas largas que surge instantaneamente com a evocação do nome. Ao celebrar hoje os seus 90 anos, é, pois, à personagem da octogenária Madame Rosa que recorremos para lembrar que, nesse breve regresso ao ecrã, Loren não escolheu um papel chique e cómodo, optou antes por um que permitisse mostrar a sua plenitude como atriz. Aquela que, por um lado, simbolizou a volúpia dos sixties, e por outro, carregou na expressão e nos braços ágeis aquela tragédia muito italiana da estirpe de Magnani..Nasceu em Roma, sim, batizada Sofia Scicolone, mas foi numa região de Nápoles que cresceu, em casa da avó materna, depois de o pai ter recusado responsabilidades familiares, empurrando a criança, a irmã e a mãe para um cenário de escassez, com os bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial à porta. Nesse contexto pouco propício, as memórias das idas ao cinema sobressaem - o sonho de Hollywood, por mais cliché que possa parecer, ganhou força por esses dias e concretizou-se mais cedo do que o esperado... na vaga hipótese de acontecer..Se houve uma alavanca, chama-se beleza: Sophia Loren encetou o seu longo percurso no cinema após uma participação no concurso Miss Itália, que apesar de não ter ganhado lhe garantiu o título Miss Elegância. .Seguiram-se umas aulas de teatro e a passagem direta para os estúdios, em 1950 (tinha 16 anos), sendo Quo Vadis, apenas um ano depois, uma das primeiras grandes produções americanas que integrou, sem créditos, numa altura em que a sua presença no grande ecrã correspondia essencialmente a figurações e sucessivos papéis menores..O striptease de Ontem, Hoje e Amanhã (1963)..Em 1953 ascendeu a protagonista, no filme Aida, mas o que fica para história é o seu encontro com Vittorio De Sica, que a dirigiu em O Ouro de Nápoles (1954), qual momento decisivo da sua revelação, e repetiu a proeza mais de uma dezena de vezes (14, no total), podendo dizer-se que foi ele que viu como ninguém a dita qualidade de Loren, entre o perfil sedutor e aquele modo de caminhar com uma confiança ultra terrena.Ao fim de uma década, seria justamente pela mão de De Sica que a jovem beldade mostraria ao mundo que era mais do que uma cara bonita e um corpo curvilíneo. A saber, em 1962 venceu o Óscar de Melhor Atriz por Duas Mulheres, realização desse cineasta de eleição, tornando-se a primeira intérprete de um filme estrangeiro (isto é, de língua não-inglesa) a alcançar a estatueta dourada da Academia.Já tinha por essa altura passado da notoriedade nacional para o panorama de Holly- wood, que veio a ser a sua segunda casa, e aí o papel do marido de uma vida, o produtor Carlo Ponti, foi fundamental na gestão de uma carreira que se soube equilibrar entre as produções italianas e americanas. .Striptease e galãs.Com efeito, os Anos 60, época em que se converteu numa das atrizes mais populares e bem pagas do planeta - em 1964, depois do milhão de dólares que Elizabeth Taylor contratualizou por Cleópatra, pediu ela o seu milhão... -, representam a fase em que libertou no ecrã uma sensualidade icónica. Na memória de muitos espectadores ficou, por exemplo, o striptease que ela faz para a personagem de Marcello Mastroianni em Ontem, Hoje e Amanhã, (1963) também de De Sica, numa cena de antologia que mostra, pela via do burlesco, o desejo enquanto projeto carnal muito imediato e nada etéreo: a inquietação de Mastroianni de olhos arregalados é uma delícia cómica....Sendo Mastroianni o definitivo parceiro conterrâneo de aventuras, e aquele com quem estabeleceu a chamada química das estrelas (voltaremos a esse ponto), a verdade é que galãs, neste caso, de Hollywood, não faltam no currículo de Loren. Começando em Cary Grant, com quem dividiu a tela no filme Quase nos Teus Braços (1958), e acabando em Marlon Brando, no roupeiro do qual ela se esconde na comédia A Condessa de Hong Kong (1967), de Charles Chaplin, há uma lista de nomes que inclui Frank Sinatra, Charlton Heston, Clark Gable e Paul Newman, sem esquecer Gregory Peck, em Arabesco (1966), essa diversão de espionagem assinada por Stanley Donen, onde Loren é o desembaraço e erotismo em pessoa; e ainda William Holden no muito esquecido The Key (1958), um belo drama de Carol Reed que conta com uma rara tristeza imperturbável de Sophia, no papel de uma mulher fechada num apartamento londrino em plena Segunda Guerra, que se resignou às falhadas relações amorosas com homens do mar. .Uma Vida à Sua Frente (2020)..Filmes inesquecíveis.Quando olhamos para a filmografia de Sophia Loren, que chega à centena de títulos, há pelo menos um par de obras que se impõe “tirar da estante” para revisitar a amplitude humana das suas interpretações, vá lá, mais complexas. Um deles é Matrimónio à Italiana (1964), mais uma vez de De Sica..No filme, Marcello Mastroianni veste a pele de um homem de negócios que, durante 22 anos, fugiu ao casamento com a sua amante (Loren), até ao dia em que ela arranja uma estratégia inovadora, aproveitando para revelar também a existência de três filhos, criados à distância, sem identificar aquele que será fruto da relação com o dito amante... Nesta história, mas sobretudo no final, em que Sophia/Filumena chora ao ver os seus três rapazes despedirem-se do hipotético pai até ao dia seguinte, há uma verdade naquelas lágrimas indissociável da ausência paterna na própria infância da atriz..Um Dia Inesquecível (1977)..O outro filme que nos ocorre, Um Dia Inesquecível (1977), de Ettore Scola, igualmente com Mastroianni, é uma lição de brilhantismo simples, no qual Loren assume a candura de uma dona de casa, esposa de um fascista, que no dia da visita de Hitler a Itália fica sozinha nas suas lides domésticas, acabando por conhecer um cativante, depressivo e enigmático vizinho. Esse, um papel comoventíssimo de Mastroianni, como antifascista e homossexual, que se vê lindamente correspondido, na inteireza do drama, por uma Sophia discreta e ardente, pura e... ansiosa pela impureza..Juntos contracenaram em 11 filmes, o último, Prêt-à-porter (1994), já noutro nível de ironia. Sobre ele, escreveu ela nas memórias: “O Mastroianni passou dificuldades e lutou para sobreviver. Viemos ambos dessa vida. A Itália era assim na altura, e talvez esteja aí outra razão pela qual gostamos tanto um do outro.” Estavam próximos no espírito e nas datas - daqui a poucos dias assinala-se o centenário de Mastroianni.