A Spoonful of Sugar, diz a canção. Uma colher de açúcar. É disso que o mundo está a precisar numa altura em que as guerras, neste caso, culturais, prosseguem com um sistema de vigilância mediática que tornou os clássicos autênticos alvos a abater, quais ameaças para as cabecinhas tenras das nossas crianças. 60 anos após a estreia (que se assinala hoje, 27 de agosto de 2024), Mary Poppins não escapou a esse vigente ímpeto protetor, surgindo a notícia inevitável em fevereiro passado como um dos últimos episódios da grande inspeção que aos poucos vai enfraquecendo as defesas naturais dos jovens espectadores. Qual a razão de queixa desta vez? Segundo o British Board of Film Classification (Conselho Britânico de Classificação Cinematográfica), o filme da Disney protagonizado por Julie Andrews contém “linguagem ofensiva”; pelo menos, o suficiente para justificar uma nova classificação etária. .Mais especificamente, em causa está uma referência depreciativa aos Khoi-khoi, povo nativo do sudoeste africano, na cena musical em que a personagem do velho Almirante Boom (lembram-se do vizinho dos Banks?) chama “hotentotes” aos limpa-chaminés sujos de fuligem - o nome foi atribuído pelos colonos holandeses aos membros dessa comunidade e, segundo o dicionário Oxford de inglês, é considerado arcaico e injurioso. Muito bem. Agora vejamos: de toda a maravilha representada em Mary Poppins, o que as crianças correm o risco de reter é uma vaga alusão a um povo remoto? Custa a acreditar que se possa pôr a hipótese de esta linguagem de época (arcaica, lá está) ser “perturbadora” para os meninos e meninas, e passível de se “propagar”, como declarou o porta-voz da dita comissão britânica... .É assim que nos encontramos em pleno ano comemorativo de Mary Poppins. Aliás, terá sido mesmo a perspetiva de um relançamento do filme pela ocasião do aniversário que pôs a mexer estas entidades competentes, de maneira a garantir um visionamento “seguro”. Resultado: a obra de Robert Stevenson, produzida por Walt Disney, passou a ser recomendada apenas num regime de supervisão parental. .Mais supercalifragilistiexpialidocious, por favor.Importa perceber que algo se perde com estas atitudes de policiamento cultural, cheias de boas intenções - não é isso que se questiona. Mas, felizmente, os clássicos resistem para as gerações que cresceram com eles, e cabe a essas gerações não deixar apagar a chama. É por isso que hoje celebramos Mary Poppins em toda a sua dimensão histórica, com qualidades e defeitos, enquanto símbolo de uma forma mágica de ver o mundo, confiando à ama “praticamente perfeita” interpretada por Andrews os nossos desejos de continuar a apreender a realidade com algum encanto. .Vinda literalmente das nuvens, com um guarda-chuva na mão direita e uma mala na mão esquerda, o nascimento no ecrã da personagem que trouxe ordem e alegria ao número 17 da rua Cherry Tree Lane, é um dos momentos mais fulgurantes da criatividade dos estúdios do Rato Mickey. Primeiro, aquela vista de Londres pintada por Peter Ellenshaw, a recriar a textura da cidade na década de 1910, com a versão instrumental de A Spoonful of Sugar e a mixagem de outros temas a soarem em fundo; depois, o entusiamo de Bert - esse artista de rua e limpa-chaminés interpretado por Dick Van Dyke -, que não poderia ser mais caoticamente harmonioso a criar a nota de abertura e apresentação da família Banks, entre a euforia sufragista da mãe e a boa disposição aristocrática do pai banqueiro, ambos pouco dedicados aos dois filhos; e, finalmente, a chegada peculiar de Mary Poppins, que aterra à porta dos Banks em jeito de solução instantânea para todos os males. .Londres pintada por Peter Ellenshaw..Com ela, as crianças aprendem a arrumar o quarto, a tomar xarope sem resmungar, a serem generosas e, sobretudo, capazes de descobrir a aventura ao virar da esquina. Lições de vida assimiladas sem métodos rígidos, numa fantasia musical que combina atores de carne e osso com desenhos animados, a sinalizar, por um lado, a proeza técnica dos estúdios, e por outro, o fim de um certo classicismo. Foi o último grande projeto pessoal de Walt Disney (que morreu dois anos depois da estreia), e aquele em que os Óscares parecem ter representado um papel de justiça irónica. A saber: uma jovem e debutante Julie Andrews saiu com a estatueta na mão da cerimónia que deixou derrotada Audrey Hepburn, cuja personagem de Eliza Doolittle, em My Fair Lady, tinha sido recusada à própria Andrews, depois da sua interpretação na Broadway. .E assim, logo à primeira, mas sem nada de principiante, Andrews conquistou Hollywood, ficando os restantes quatro Óscares (de 13 nomeações) distribuídos, nomeadamente, pelos efeitos especiais e pela música dos irmãos Richard e Robert Sherman (banda sonora e canção original), que se tornou uma das marcas intemporais do filme, desde o tema Supercalifragilisticexpialidocious ao Chim Chim Cher-ee. Richard morreu no passado mês de maio, aos 95 anos. .A aventura musical dos limpa-chaminés..Uma ama mais altiva.Lançada a sequela O Regresso de Mary Poppins em 2018, a principal diferença de qualidade em relação ao original estava na música: nenhuma das canções novas do filme de Rob Marshall (escritas por Marc Shaiman e Scott Wittman) tiveram o mesmo êxito, ou sequer capacidade de ficar na memória dos espectadores. Mas a produção em si tem bastantes méritos, desde logo, o modo como Emily Blunt assumiu o papel da ama sem adocicar a fórmula, ou não fosse a sua Mary Poppins mais dotada de uma certa altivez britânica, que muitos associaram à própria letra e postura da autora dos livros na origem dos filmes, P.L. Travers (já lá vamos). Seja como for, na arte do embalo, o profissionalismo de Andrews e Blunt é praticamente o mesmo. .Na essência, O Regresso de Mary Poppins trata-se de uma repetição espiritual da história, décadas mais tarde, em que os belíssimos números musicais do clássico surgem evocados por novas versões não menos espetaculares. E aí, vale a pena destacar a honrosa presença de Dick Van Dyke, que, na altura com 93 anos, se prestou a uma aparição de exigente e enérgica pose coreográfica... Ainda agora, aos 98, continua a mostrar agilidade com os pés em performances de passadeira vermelha! .Um sonho concretizado.Por trás do sucesso de Mary Poppins, a obra de 1964, há toda uma história de resistência autoral. Por outras palavras: P.L. Travers não facilitou a vida a quem, com o mesmo grau de insistência que a recusa dela, decidiu levar os seus livros ao grande ecrã. Com efeito, Walt Disney tinha prometido às filhas adquirir os direitos dessa literatura de cabeceira, e não punha a hipótese de desistir - só conseguiu realizar o sonho das meninas cerca de 20 anos depois, mas ao fazê-lo acabou por trazer regozijo a muitas outras famílias. .Essa narrativa agridoce do finca-pé de P.L. Travers está contada no filme Ao Encontro de Mr. Banks (2013), de John Lee Hancock, e é mais ou menos isto: Walt Disney convidou-a a visitar os estúdios em Los Angeles, para poder estabelecer contacto pessoal com a escritora australiana, e a partir daí tentou convencê-la usando todos os argumentos possíveis, incluindo os de um bom negócio. Terminantemente avessa à bonecada de Disney, ela só transigiu na condição de a nomearem consultora do filme, passando semanas no estúdio em Burbank, Califórnia, a ditar as suas regras à equipa criativa (ficaram famosos os seus constantes “nãos”, de resto, audíveis nas gravações que a própria exigiu que se fizessem das reuniões de trabalho). .Interpretada por Emma Thompson com uma acidez tragicómica, ao lado de um Tom Hanks divertidamente charmoso no papel de Disney, a Travers que vemos em Ao Encontro de Mr. Banks, e que bate certo com os relatos, é alguém que nunca largou uma postura áspera contra o “sentimentalismo” da casa Mickey Mouse. Não admira por isso que, mesmo tendo integrado os trabalhos, se sentisse frustrada com os resultados na tela: sequências animadas com pinguins a dançar, o casting de Van Dyke, a aparência demasiado jovem e atraente de Andrews e as canções dos Sherman foram algumas das queixas da autora. Mas aí já Disney não estava disposto a ceder à teimosia, imbuído de uma confiança absoluta no feito que alcançara. Havia génio nesta produção, coisa que o tempo e gerações de espectadores vieram a confirmar para além do êxito momentâneo (foi o filme mais rentável do ano). E, acima de tudo, o sonho das filhas de Walt concretizara-se: a magia ficou no ar, para todos.