“Este é o melhor papel que alguma vez tive oportunidade de interpretar num filme”, disse Brandon Lee (1965-1993) sobre a personagem de Eric Draven. Quem? O guitarrista que se ergueu do túmulo para vingar a própria morte, e a da sua noiva, depois de terem sido ambos brutalmente assassinados por um gangue em vésperas de Halloween. As palavras do ator, essas, são da sua derradeira entrevista (as filmagens ainda decorriam), onde cada frase realça dolorosamente a paixão pelo mito que estava a criar para o grande ecrã, mal podendo imaginar a dimensão desse mito voltada para si mesmo, dentro de pouco tempo. “Não há regras para o modo como se comportará alguém que regressou dos mortos”, afirma na mesma entrevista. E quase que o imaginamos a regressar a este mundo, na forma animal de um corvo, para aplicar a “justiça das vítimas” que, segundo Lee, se traduz em violência justificada. Mas a frase que nos parte mesmo o coração é esta, citada de cor do romance O Céu que nos Protege, de Paul Bowles: “Dado que não sabemos quando vamos morrer, pensamos na vida como um poço inesgotável, embora tudo aconteça só um certo número de vezes”. .O Corvo estreou-se em 1994, e o acontecimento funesto já estava no seu ADN: o ator sino-americano, filho da lenda das artes marciais Bruce Lee, morrera aos 28 anos baleado no abdómen durante a rodagem desse filme de Alex Proyas. Uma das maiores tragédias ocorridas num set (obviamente, muito lembrada em 2021, a propósito do caso de Alec Baldwin e a morte da diretora de fotografia Halyna Hutchins, na rodagem do filme Rust), que deixou toda uma equipa traumatizada, a começar pelo ator Michael Massee, a quem calhou o fatídico gesto encenado de disparar uma arma indevidamente carregada pelo assistente do armeiro. Consta que Massee, falecido em 2016, nunca foi capaz de ver o filme, e numa entrevista em 2005 confessava ainda ter pesadelos com o incidente. .Não terá sido o único. A reforçar a mitologia desta morte, há relatos arrepiantes, como o do colega de elenco Jon Polito, que, ao ver Brandon Lee cortar-se num vidro durante uma cena, lhe disse para “não repetir a história de Vic Morrow” (o ator que morrera num acidente de helicóptero na rodagem de Twilight Zone: The Movie), ou do produtor Jeff Most, que numa entrevista do ano passado ao jornal The Guardian recordou ter visto Lee pela última vez através da janela do escritório, enquanto falava ao telefone, lendo no seu aceno de mão um sinal de adeus: “Eu literalmente disse à pessoa ao telefone que era estranho o Brandon acenar para mim como se estivesse a despedir-se, quando ele sabia que ainda faltavam duas semanas de filmagem.” .O "anjo vingador" Brando Lee..Foi assim que o anjo vingador de O Corvo ficou na memória de quem com ele trabalhou. Um jovem de acenos e sorriso aberto, postura séria na hora de rodar e com uma espécie de prenúncio dramático a envolver a sua interpretação. A qual poderia nem ter existido: James O’Barr, o autor da banda desenhada que o filme adapta, não era um crente no casting de Lee filho, que só conhecia das artes marciais em Fúria no Bairro Japonês (1991). Mudou de opinião apenas quando o viu com a maquilhagem e a roupa do Corvo, a pronunciar as falas exatas do livro, como se de uma encarnação dos desenhos se tratasse – nesse momento, Johnny Depp deixou de ser a hipótese mais acarinhada na cabeça do artista gráfico, e o rosto branco do vocalista dos The Cure, Robert Smith, no videoclipe de Lullaby, insinuou-se como uma forte referência. Não por acaso, é dos Cure o tema original do filme, Burn, que se mistura com temas de outras bandas, como Rage Against the Machine ou Nine Inch Nails (esta última a fazer um cover de Joy Division). .Um musical com Michael Jackson.A título de curiosidade, é preciso não esquecer que O Corvo começou por ser pensado pelos executivos da Paramount como um musical para a estrela Michael Jackson... A proposta chegou a fazer rir o criador James O’Barr, que a tomou como uma brincadeira, mas acabou arquivada, nesses moldes, quando o australiano Alex Proyas tomou as rédeas da adaptação, já com a escolha de Lee para o papel principal e a consciência clara do estilo punk e gótico, não propriamente pop, que deveria revestir a história. .Ao revisitar hoje O Corvo, enquanto obra de culto, percebe-se a importância desta estética vincada, em que o caos violento e a dor se misturam com a expressão de uma Detroit chuvosa, produzindo o ambiente de submundo propício à carga trágica de Eric Draven/Brandon Lee, esse corpo tão invencível quanto frágil. Um corpo que, uma vez desaparecido na vida real, teve de ser “reconstituído” digitalmente, com a ajuda de duplos que fizeram o seu melhor num angustiado clima de trabalho. .Um desses duplos foi o agora famoso realizador dos filmes John Wick, Chad Stahelski, que contou recentemente à Esquire como Proyas o convocou para substituir Lee (de quem o próprio Stahelski era amigo), passando semanas a ver com ele o material filmado para conseguir replicar a linguagem corporal do falecido ator: “A substituição facial à época não era grande coisa – foi preciso mimetizar tudo”, lembra. Mas para além disso, a decisão moral de se terminar o filme apesar do luto não seria a mesma sem o apoio da noiva de Lee, Eliza Hutton. É para ela a dedicatória nos créditos finais. .Renascer das cinzas.Não obstante ao longo dos anos se ter insistido em produzir sequelas de O Corvo – foram três, nenhuma digna de particular nota –, o novo filme do britânico Rupert Sanders é o primeiro a colocar o dedo na ferida do original, imaginando uma versão moderna, mas old school, da narrativa de vingança, que não interfere com o brilho da memória de Lee; antes colhe o lado mais romântico da personagem. É nesse sentido que o Eric de Bill Skarsgård se destaca tanto pelo poder de evocar uma interpretação trágica como pela sensibilidade de transportar um romantismo magoado. Em entrevistas, Sanders disse mesmo que, considerando Brandon Lee sinónimo de O Corvo, a ideia aqui era homenageá-lo sem a tentação de colar o novo filme ao seu registo. Um filme “romântico na medida de uma canção dos The Cure”. .E sim, é justo afirmar que Sanders, realizador de Ghost in the Shell – Agente do Futuro (2017), sabe o que está a fazer ao valorizar o vínculo amoroso: se no The Crow de Proyas tudo começa na noite do brutal homicídio dos amantes, concentrando-se a ação na vingança e recordações turvas do herói estilhaçado e solitário, neste remake (que é sobretudo uma renovada adaptação da própria novela gráfica) há tempo para o amor e tempo para a punição do gangue assassino, desta feita liderado por um Danny Huston em discreta pose vampírica, que o põe em pé de igualdade sobrenatural com o jovem Corvo, entre o mundo dos vivos e dos mortos... Em suma, um genuíno conto gótico ambientado em Praga. .Ao amplificar-se a história nesse aspeto, procurou-se uma intensidade que não fica nada aquém do original, ou não fosse o regresso do anjo vingador capaz de desenhar um bailado de pura violência catártica – o melhor exemplo disso é uma sequência na ópera, com laivos de John Wick, em que Eric disfere golpes sangrentos atrás de golpes sangrentos até chegar à sala onde se encontram os seus principais alvos, mantendo sempre um diálogo cénico com o que se passa em palco. Uma daquelas montagens dignas de antologia. .A hora de Bill Skarsgård.Skarsgård e FKA Twigs: uma história de amor..Conhecido pelo papel do vilão de It, o palhaço Pennywise, Bill Skarsgård tem agora uma verdadeira oportunidade de revelação ao grande público. O que equivale a dizer que não há como escapar ao magnetismo da sua melancolia negra, ou especificamente àqueles olhos tristes em jeito de antecâmara de uma “alma destroçada”, como identifica Shelly (a cantora FKA Twigs) logo no início, esse fatal interesse amoroso de Eric. .Nascido e criado em Estocolmo, filho do ator veterano Stellan Skarsgård (e irmão de Alexander), Bill vem passando mais ou menos despercebido numa indústria que até agora lhe deu diversas formas de camuflagem. Enfim, não desta vez. Em O Corvo, a lógica é contrária ao seu desaparecimento na paisagem do filme, já que este começa e acaba na linguagem do seu corpo, no modo como a juventude rasgada de Skarsgård habita a ternura e selvajaria noturnas, segurando-as numa só nota humana. E por falar em seres noturnos, aguardamos com expectativa a sua personificação do Conde Orlok no próximo Nosferatu, de Robert Eggers, que chega aos cinemas no Natal... .Para já, a sua habilidade para ressuscitar o Corvo é mais do que digna de aplauso, sobretudo tratando-se de um papel tão associado a um rosto trágico. A memória de Brandon Lee esteve, de resto, sempre no espírito desta rodagem: Rupert Sanders proibiu categoricamente o uso de armas de fogo no set.