As efemérides transportam consigo perguntas antigas, nem sempre cómodas. Por exemplo: até que ponto os cidadãos portugueses conhecem o 25 de abril de 1974 através do cinema... português? Em boa verdade, creio que pouco e mal. Mesmo sem qualquer pretensão de obter uma lista exaustiva de referências, somos levados a reconhecer que não existe em Portugal aquilo que se possa chamar um "género histórico". Por razões que não decorrem do talento, muito ou pouco, dos cineastas. Acontece que a consolidação de um "género" - um modelo regular e consistente de abordagem de uma temática comum - depende da existência de uma indústria minimamente estável. Ora, no pós-25 de Abril, no domínio cinematográfico, nenhuma política cultural conseguiu consolidar tal indústria. Objetivamente, nas últimas quatro décadas, a paisagem audiovisual apenas produziu uma verdadeira estrutura industrial: a da telenovela.. Dito isto, seria precipitado concluir que o 25 de Abril está ausente da produção cinematográfica portuguesa. Sem esquecer que evocar o 25 de Abril - estabelecendo alguma relação com a sua densidade política, emocional e simbólica - não é o mesmo que reunir meia dúzia de imagens da multidão do Largo do Carmo, montar tudo em tom acelerado e colocar Grândola, Vila Morena na banda sonora... Tal solução não passa de um lugar-comum, acomodado e preguiçoso: pode evocar a nossa alegria pelo fim da ditadura, mas nada nos diz sobre o "espírito" e as convulsões da revolução que pôs fim à Guerra Colonial. No ano 2000, num pequeno filme, 25 de Abril - Uma Aventura para a Democracia (16 minutos, YouTube), recorrendo a imagens (e sons) de arquivo, Edgar Pêra resumiu essa questão de forma sugestiva. Aí encontramos, não uma memória "santificada" do 25 de Abril, mas uma colagem, dir-se-ia uma colisão, de muitos fragmentos de memória que nos levam a pensar em algo óbvio, nem sempre tido em conta: acontecimentos como o nascimento da nossa democracia envolvem o desafio de repensar como olhamos - neste caso, como filmamos - o mundo à nossa volta..CitaçãocitacaoAté que ponto os cidadãos portugueses conhecem o 25 de Abril de 1974 através do cinema... português?.Daí também o valor do mítico filme coletivo que recebeu o título de As Armas e o Povo. Datado de 1975, foi rodado em poucos dias, entre o 25 de Abril e o 1.º de maio de 1974, por um grupo alargado de profissionais (Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica). A sua dimensão mítica decorre do facto de nele encontrarmos o registo, a quente, da vibração das ruas naqueles dias, incluindo a manifestação do dia 1 em que discursaram Mário Soares e Álvaro Cunhal. Mas é também resultado da sua raridade: durante décadas, As Armas e o Povo foi um objeto pouco visto, tendo sido editado em DVD, com chancela da Cinemateca Portuguesa, apenas em 2020; a edição contém um trabalho documental, assinado por Manuel Mozos, com depoimentos de alguns dos profissionais envolvidos na sua produção, rodagem e montagem: António da Cunha Telles, Eduardo Geada, Fernando Matos Silva, João Matos Silva, Leonel Brito, Luís Galvão Teles e Monique Rutler..São poucos os títulos que tratem diretamente dos acontecimentos do dia 25 de Abril, por assim dizer, "reconstituindo" as ações de algumas personagens emblemáticas. Capitães de Abril (2000), realizado por Maria de Medeiros, é um exemplo que teve especial visibilidade internacional, a começar pela seleção oficial do Festival de Cannes, na secção "Un Certain Regard": nele encontramos uma evocação daqueles acontecimentos, destacando a figura de Salgueiro Maia, interpretado pelo italiano Stefano Accorsi. Entretanto, aguarda-se o lançamento de Salgueiro Maia - O Implicado, dirigido por Sérgio Graciano, com Tomás Alves no papel central: já teve data anunciada mas, devido à pandemia, continua por estrear..Com o passar dos anos - através da diversidade de leituras da própria dinâmica do 25 de Abril, suas origens e consequências -, alguns filmes foram refletindo, justamente, o facto de não haver história "automática" do que quer que seja. Que é como quem diz: fazer história é sempre reescrever (ou refilmar) as memórias que herdamos. Daí que alguns cineastas se tenham interessado pelos próprios documentos que, direta ou indiretamente, nos remetem para o 25 de Abril. Rui Simões, por exemplo, fez o seu balanço do pré e pós-1974 em Deus, Pátria, Autoridade (1976) e Bom Povo Português (1980), no essencial através da remontagem de documentos cinematográficos e televisivos. Outro País (1998), de Sérgio Tréfaut, recolhe fotografias e imagens de filmes com assinatura de estrangeiros que nos visitaram, revelando "outras" visões, distintas e distantes de tudo aquilo que se tornou rotina figurativa. Cartas a uma Ditadura (2006), de Inês de Medeiros, tem como base uma coleção de cartas escritas por mulheres, em 1958, resultantes de uma manobra de propaganda no sentido de consagrar António de Oliveira Salazar como "salvador da pátria". 48 (2010), de Susana de Sousa Dias, analisa o sistema de catalogação dos cidadãos pelo Estado Novo, recuperando fotografias de prisioneiros políticos. Já editados em DVD, são filmes que, para lá das componentes específicas dos seus olhares, envolvem uma mensagem pedagógica: cada nova narrativa, interpretação ou até mesmo geração refaz a história, discutindo a história que recebeu. Exemplo invulgar de tal dialética são os filmes Torre Bela (1977), de Thomas Harlan, e Linha Vermelha (2011), de José Filipe Costa. O primeiro, dirigido por um dos estrangeiros que veio a Portugal testemunhar a dinâmica social e política do 25 de abril, acompanha um capítulo nuclear da Reforma Agrária: a ocupação pelos trabalhadores de um latifúndio no Ribatejo; o segundo elabora uma arqueologia do trabalho de Harlan, recuperando imagens, reencontrando protagonistas e, em última instância, formulando uma pergunta perturbante: de que modo o labor documental do cinema (equipas técnicas, câmaras, gravadores de som, etc.) pode contaminar o comportamento daqueles que são filmados?.O mais rudimentar bom-senso permite compreender que a história cinematográfica do 25 de abril está muito longe de se esgotar nas alusões mais ou menos diretas, por vezes panfletárias, à data e ao seu simbolismo. Aliás, na sua diversidade temática e estética, os filmes citados exemplificam isso mesmo. Daí a importância de outros títulos que, através das histórias que contam, nos convocam para algum tipo de reflexão sobre a conjuntura histórica que encontrou naquela data a sua cristalização simbólica. Vale a pena recordar dois deles, agora com renovada atualidade, já que foram recentemente editados em DVD pela Academia Portuguesa de Cinema, em cópias restauradas pela Cinemateca Portuguesa: O Mal Amado (1973), de Fernando Matos Silva, e A Santa Aliança (1977), de Eduardo Geada..Alvo da censura, O Mal Amado teve o seu negativo confiscado, acabando por ser um dos primeiros filmes libertados, estreando-se no dia 3 de maio de 1974; nele se encena uma galeria de personagens assombradas pela Guerra Colonial, num registo em que as diferenças de gerações se cruzam com as componentes melodramáticas. Por sua vez, A Santa Aliança aborda o imediato pós-25 de Abril, durante o chamado PREC ("processo revolucionário em curso"), num quadro de contrastes em que as diferenças de classe e o poder do dinheiro são fatores determinantes. Dois filmes estreados em 1975 (em pleno PREC, precisamente) podem também ajudar-nos a compreender o ziguezague de coincidências e contrastes entre o cinema português e a nossa história coletiva. São eles Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos, e Benilde ou a Virgem Mãe, de Manoel de Oliveira. O primeiro, rodado antes do 25 de Abril, encena as relações no interior de uma família tipicamente portuguesa como um sistema hierárquico que "duplica" a administração do próprio país por Salazar - termina com as imagens, estranhamente premonitórias, do Terreiro do Paço vazio. O segundo teve a sua estreia em Lisboa, na sala desaparecida do Apolo 70, pouco antes do 25 de Novembro (dia 21); obra mestra de Oliveira, momento fulcral na reinvenção de um cinema contaminado pelo artifício do teatro, passou "invisível" no interior daqueles dias agitados. Talvez se possa dizer que, não apenas politicamente, mas também no plano cinematográfico, é o 25 de Novembro que encerra um ciclo da nossa história, tecido de elementos factuais e imaginários. Daí a preciosa raridade de Gestos & Fragmentos (1983), também de Seixas Santos, um filme que combina três registos: um depoimento de Otelo Saraiva de Carvalho sobre a génese e a consumação do 25 de Abril; uma reflexão de Eduardo Lourenço em torno das relações entre poder militar e ação política; e um capítulo assumidamente ficcional em que um jornalista americano, interpretado por Robert Kramer (notável autor da produção independente dos EUA), analisa os enigmas do dia 25 de Novembro. Como se a história fosse uma aventura interminável entre a evidência dos factos e os mistérios do poder.. dnot@dn.pt