Uma corrida contra o tempo para salvar micróbios essenciais à vida humana
Diversidade microbiana está ameaçada e cientistas tentam organizar uma espécie de Arca de Noé para armazenar uma coleção de bactérias, vírus e outros microrganismos que serão necessários, no futuro, para fazer face ao aumento de doenças crónicas. Tema vai ser debatido em simpósio organizado pelo Instituto Gulbenkian de Ciência.
"Costumo brincar e dizer que se um extraterrestre viesse à Terra isolar o DNA do ser humano iria concluir que somos bactérias e não seres humanos." A frase de Karina Xavier, investigadora principal do Instituto Gulbenkian de Ciência, serve para apresentar um tema que começa a ganhar urgência no debate científico: o microbioma humano. "Talvez nem toda a gente tenha consciência disso, mas vivemos com uma grande quantidade de micróbios no nosso corpo. E a verdade é que precisamos deles para muitas das nossas funções fisiológicas", frisa a cientista.
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O problema é que essa diversidade de microrganismos, crucial para a saúde humana, está ameaçada por uma urbanização que cresce a um ritmo sem precedentes. Por isso, preservar o património microbiano da humanidade tornou-se uma "missão urgente", com uma rede global de cientistas apostada em criar "uma espécie de Arca de Noé de micróbios, um biobanco para armazenar a maior diversidade de bactérias, vírus, fungos e outros microrganismos essenciais para a espécie humana", conta Karina Xavier, que é, juntamente com Luís Teixeira, também do IGC, um dos dois representantes portugueses no projeto The Microbiota Vault - O Cofre da Microbiota.
"Convivemos com milhões de micróbios ao longo da nossa vida, que são comensais, vivem em simbiose connosco e ajudam a proteger-nos dos patogénicos [micróbios infecciosos, como alguns vírus ou bactérias]. Ora, como o ser humano evoluiu ao longo de milhares de anos com estes micróbios, também nos tornámos dependentes deles para as nossas funções fisiológicas, desde a nutrição à maturação do nosso sistema imunitário", refere a investigadora, explicando que o ser humano tem, no seu corpo, "tantas ou mais células de microrganismos do que células humanas".
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Ora, com a rápida evolução no estudo do microbioma [ndr: os termos microbioma e microbiota são muitas vezes usados como sinónimos, com ligeiras diferenças entre ambos na definição científica: microbiota será o conjunto das diferentes populações dos micróbios e microbioma o conjunto dos micróbios mais os seus genes] ao longo da última década, tem sido verificada uma clara associação entre a crescente urbanização e um aumento acentuado de disfunções imunes e metabólicas. Ameaçados de extinção, muitos destes micróbios serão necessários, no futuro, para reverter as tendências globais no aumento de doenças crónicas. O que transforma a missão atual dos cientistas numa corrida contra o tempo.
"Sabe-se agora que algumas das moléculas produzidas por estes micróbios da nossa microbiota têm um papel no chamado eixo intestino-cérebro, podem influenciar o nosso comportamento. Uma microbiota não saudável, pouco diversificada, está associada a uma suscetibilidade para vários tipos de doenças: quer ao nível nutricional, na obesidade e na diabetes, quer ao nível de doenças infecciosas ou crónicas, como asma ou alergias, mas também a algumas doenças do foro neurológico, como ansiedade e depressão", descreve Karina Xavier.
Assim, é importante "alargar o debate e a consciencialização" sobre a importância desta diversidade microbiana, bem com reconhecer a urgência de preservar os hotspots biodiversos ainda existentes. A esse propósito, nas próximas quinta e sexta-feira, o Instituto Gulbenkian de Ciência organiza o simpósio "GloMiNe for Africa", o segundo de uma série de workshops que pretendem estabelecer uma rede de microbioma global, depois de o primeiro se ter realizado no Peru - tal como África, a América Latina ainda conserva alguns desses hotspots de diversidade.
"Tem vindo a ser observado que há uma perda da diversidade dos micróbios "humanos" em centros urbanos comparativamente a populações que vivem em ambientes mais tradicionais, em contacto com a natureza, que não dependem tanto de alimentos processados. Neste simpósio trazemos algumas instituições de países africanos - Angola, Moçambique, Gana... - para falarmos desta temática. Queremos fazer uma rede de trabalho global, em primeiro lugar para falar sobre a importância do microbioma e também para estimular mais indivíduos (investigadores, estudantes, políticos...), mais próximos dessas populações, ricas em biodiversidade, a fomentarem localmente essa recolha e preservação de micróbios", diz a investigadora do IGC, sobre os objetivos de um simpósio que vai reunir alguns dos maiores especialistas mundiais na matéria.
O sucesso destas ações de sensibilização permitirá enriquecer a coleção das tais Arcas de Noé a deixar como herança para gerações futuras e que deverão ficar guardadas na Suíça e na Noruega, países historicamente conhecidos como "neutrais". "Mas ideia é que haja uma duplicação das coleções, para que cada país conserve as suas próprias amostras. E um dos primeiros objetivos é de facto convencer os países a começarem a guardar essa diversidade e a perceber a importância deste potencial que têm", afirma Karina Xavier.
Além desta missão global de preservação do microbioma, há uma espécie de manual de boas práticas que cada um pode seguir para cuidar a qualidade da sua microbiota e que passam por "uma alimentação diversificada e saudável, evitar excesso de antibióticos, ter um estilo de vida saudável, contacto com a natureza e com os animais", refere a investigadora.
Dirt is good (a sujidade é boa) é um conceito que ganha validade neste contexto, apesar de ter sofrido um revés nestes tempos de higienização quase absoluta face à ameaça pandémica. "Deixar as crianças ter contacto com a terra, fomentar essa espécie de sujidade nas crianças mais novas, é uma maneira de adquirirmos essa microbiota diversificada", admite a cientista, lembrando que nos primeiros anos de vida é quando se dá a colonização da microbiota nos humanos.
Num futuro próximo, diz Karina Xavier, haveremos de estar a discutir "formas de repor a diversidade da nossa microbiota", tratamentos baseados em transplantes fecais (que "já existem"), conceitos como dadores de fezes ou a importância de criar bancos nacionais com amostras do microbioma de cada um, à semelhança do que acontece, por exemplo, hoje em dia, com a preservação do cordão umbilical. Além de outras coisas que ainda nem sequer prevemos. Afinal de contas, "só conhecemos ainda talvez 1% do potencial de toda a nossa microbiota".
rui.frias@dn.pt
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