Um mistério com quatro séculos. O que aconteceu ao Dodó de Oxford?
Ao longo de 50 anos, John Tenniel entregou semanalmente as suas ilustrações às páginas da revista satírica inglesa Punch. O traço do cartoonista cravava farpas no cenário político e social britânico da segunda metade do século XIX, sem renunciar a temas como a condição da classe trabalhadora, economia, guerra e nacionalismos.
Não obstante a profícua produção do artista nas páginas da Punch, acima dos dois mil cartoons, não foram estes que deram o palco mundial a Tenniel. A fama maior para o artista nascido em 1820, estampou-se em pouco mais de 90 ilustrações publicadas num par de livros de Charles Lutwidge Dodgson. Dogson assinava para as letras com um pseudónimo, o de Lewis Caroll. Assim o fez no seu As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de 1865, e Alice no Outro Lado do Espelho, de 1871. Em ambas as obras, o nome de Tenniel ombreava com o do autor que criou personagens como o Gato de Cheshire, o Chapeleiro Louco e a Rainha de Copas. Um elenco ao qual Lewis Caroll juntou, no capítulo terceiro do seu livro, uma ave que, séculos antes, trouxera o espanto à Europa. Caroll, na sua descrição, não resistiu a estereotipar o dodó. Corpulento, atarracado, de bico poderoso, excêntrico na sua aparência. Tenniel assim também fixou em ilustração a ave que, em 1638, fora exibida em espetáculos nas ruas londrinas e, mais tarde, grosseiramente empalhada.
De acordo com o paleontologista e escritor inglês Julian Hume, não mais de 11 dodós terão chegado à Europa e Oriente nas décadas que mediaram entre a sua descoberta pelos holandeses e a sua extinção oficial. Na ilha Maurícia, no Oceano Índico, onde era espécime endémica, o dodó, ave não voadora, com perto de um metro de altura e mais de 20 Kg de peso, foi presa fácil para marinheiros e para toda uma fauna doméstica introduzida no território. Entre 1598 e 1662, data em que o dodó terá sido visto pela última vez, uma orgia de devastação percorreu a Maurícia. Homens, cães, gatos, ratos e porcos dizimaram uma espécie que subsistia há dezenas de milhares de anos na região. Para legiões de marinheiros esfomeados, após longas travessias marítimas, era de somenos que a carne de dodó não fosse apetecível. Valia-lhes a preciosa moela, saborosa e tenra.
Na realidade, Carrol e Tenniel não exerceram um preconceito sobre o dodó. Em 1865, a morfologia do animal da família dos pombos, era aquela que a pintura do século XVII entregara à posteridade ou em esboços toscos, em diários de bordo de navios holandeses, de dodós vivos ou recém-abatidos. Somente no século XVIII, o botânico e zoólogo sueco Carl Lineu fez a primeira descrição científica do Raphus cucullatus, o dodó. Para as artes, sobravam os mitos em torno desta ave solitária, que vivia na floresta costeira da Maurícia, descrita com uma plumagem verde acastanhada, patas amarelas, um tufo de penas na cauda, cabeça cinza sem penas e um bico com mais de 20 cm. Os raros exemplares empalhados, expostos em museus ou coleções privadas, resultavam de uma amálgama de fragmentos, com enchimentos que tornavam o dodó obeso e, não raro, articulado com partes de outras aves como patos e cisnes.
Assim viu o dodó o pintor inglês Roelant Savery que, em 1626, pintou aquela que se fixou como a imagem padrão da ave extinta em Maurícia. Hoje, à guarda do Museu Britânico, a tela Edward"Dodo cunhou o nome do ornitólogo George Edwards, que adquirira a obra de arte no século XVIII.
Edward"Dodo conta com uma cópia num outro museu no Reino Unido a que lhe junta uma das relíquias da ave extinta há perto de 400 anos. O edifício gótico vitoriano do Museu de História Natural da Universidade de Oxford exibe no seu átrio o crânio, o anel ósseo do olho, o esqueleto de uma pata, um pouco de pele e uma pena (descoberta em 1986) de um dodó. Pode parecer parco tributo para uma espécie que outrora pululou na ilha índica. Contudo, o Dodó de Oxford fornece um banquete de ADN para desvendar um pouco mais da coexistência efémera da ave com os humanos.
Voltemos a Lewis Caroll, visitante frequente do Museu de Oxford, fonte de matéria-prima para personagens e cenários da sua escrita. Entre eles o Dodó de Oxford que, na época, já trazia uma história europeia com mais de 200 anos. Das ruas de Londres do século XVII onde, ainda vivo, fora testemunhado pelo escritor Hamon L"Estrange, à coleção Tradescant, fundada pelo botânico, jardineiro e colecionador britânico com o mesmo nome. Coleção que, mais tarde, na década de 1650, integrou o Museu Ashmolean da Universidade de Oxford. O que restava do dodó exibido nas ruas da capital inglesa foi incluído num catálogo de 1656. Só em 1847, a pele e o anel ósseo do Dodó de Oxford foram submetidos a dissecação e estudo. Na época, em 1848, os ornitólogos ingleses Hugh Strickland e Alexander Melville publicavam o livro The Dodo and its Kindred, separando os mitos dos factos. A ave atarracada ganhava novos contornos, mais elegantes. Os mesmos que, em 1948, o taxidermista Derek Frampton introduziu na reconstrução que fez do Dodó de Oxford. Mais de meio século volvido, a peça mereceu, em 2015, um périplo de vários meses com paragens nas Ilhas Britânicas.
A história do Dodó de Oxford entrou no âmbito da ciência forense em 2018 com os investigadores da Universidade de Warwick a determinarem a causa de morte do animal, atingido a tiro no crânio. Conclusão que pôs em causa a origem remota da ave. Porquê abater o dodó em Londres? Ou, como transportar até à Europa, sem que se degradasse, um animal abatido na longínqua Maurícia? Ao dodó que inspirou Caroll numa visita ao Museu de Oxford aguarda um novo capítulo, o da investigação balística.
Por décadas, inspirado na monografia de Hugh Strickland e Alexander Melville, o professor George Clark, vasculhou a ilha Maurícia, na senda de ossadas de dodó. Em 1865, o insalubre pântano de Mare aux Songes, no litoral sudeste do território, recompensou o britânico. Ao utilizar um processo arcaico de exploração de ossadas, calcando com os pés descalços o fundo do pântano, Clark retirou do lodo os ossos de 300 exemplares de dodós, embora nenhum crânio. Já em 2005, uma parcela do pântano foi escavada por uma equipa de investigadores holandeses. Trabalho que expôs ossadas com mais de quatro mil anos, apresentadas em 2006 no Museu de História Natural de Leiden, nos Países Baixos.
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